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Rev. Haitiana, a Lei de Insurreição de 1807 e os Protestos nos EUA.

Nos últimos dias, o Trump ameaçou os manifestantes com uma Lei de 1807. Traduzi uma thread do prof. Kevin Gannon (@TheTattooedProf) que explica as raízes dessa norma.

Segue a tradução no fio 👇🏾
2. Você talvez esteja se perguntando “Prezado, o que diabos estava acontecendo em 1807 que necessitava uma lei federal permitindo ao presidente mobilizar as forças armadas dos EUA para suprimir insurreições ou rebeliões?”. E essa é uma boa questão. Dê um tapinha nas suas costas.
3. Bem, as escapadas de Aaron Burr no oeste dos Apalaches haviam terminado em 1806, e, embora esses eventos possam ter aumentado o espectro da desunião em alguns setores, esse não era a principal preocupação dos americanos brancos que estavam aflitos com uma “insurreição”.
4. Não, o medo da “insurreição”, “distúrbio”, “tumulto”, etc., veio de senhores e de lideranças escravistas estatais (duas classes que se sobrepunham consideravelmente). Por quê? Bem, em 1805, a república negra independente do Haiti promulgava sua primeira constituição.
5. 1805 encerrou uma Revolução de aproximadamente 14 anos, na qual haitianos derrubaram o regime escravista colonial (chamada de Saint-Domingue, Haiti havia sido a maior colônia açucareira francesa, de condições particularmente terríveis) e expandiram a luta sobre toda a colônia.
6. Nela, os haitianos repeliram as tentativas de invasão de espanhóis e britânicos, antes de derrotar os esforços finais de reconquista exercidos por Napoleão. A Rev. Haitiana é o evento mais importante da história do mundo moderno que você provavelmente não estudou na escola.
7. O Haiti foi a 2ª república independente nas Américas e o primeiro estado fundado por antigos escravizados, que lutaram pela sua liberdade *e* pela soberania política. E isso assustou PRA PORRA a classe senhorial de todo o hemisfério – especialmente nos EUA.
8. Franceses que fugiram de St. Domingue no início da Rev. aportaram em lugares como Charleston e Nova Orleans, trazendo histórias de horror: o espectro da guerra racial que pairava na mente de todos os escravistas, não importando quão “justificável” eles proclamavam a escravidão
9. Senhores estadunidenses acompanharam os eventos no Haiti de perto – era literalmente uma questão de vida ou morte. Os negros também sabiam relativamente bem o que estava ocorrendo. Como J. Scott aponta em The Common Wind, as redes de comunicação negras estavam por toda parte.
10. “Haiti”, para os escravistas, tornou-se as “caravanas de imigrantes” ou as “células do ISIS” daqueles tempos. O bicho-papão dos supremacistas brancos temendo que sua violência seria revidada. E em cada susto insurrecional do período, o sussurro de "St. Domingue" estava lá.
11. Foi o caso da trama da Rebelião de Gabriel, em 1800-1801, na Virginia, traída no último minuto. O objetivo e a violência do plano dos rebeldes (queimar Richmond e matar os brancos assim que eles saíssem das suas casas em chamas) parecia ecoar o Haiti.
12. No seu testemunho, os rebeldes negros afirmaram que o próprio Gabriel Prosser citou “Santo Domingo” como inspiração e uma possível fonte de reforços. Os brancos de Virginia ficaram ensandecidos: meu deus do céu! Foi evitada por pouco uma invasão revolucionária do Haiti!
13. O primeiro presidente do Haiti, Jacques Dessalines, havia declarado “independência ou morte” como mote do país. E agora parecia que as pessoas negras escravizadas nos EUA estavam estendendo a missão. Para os escravistas nervosos, aparentemente o contágio estava se espalhando.
14. Por todo os estados escravistas e territórios do Sul dos EUA, a ansiedade branca subiu ao ponto máximo. Mandado do governador W. Claiborne, em 1804, ordenava que qualquer navio entrando em Louisiana seria revistado na procura de “maus-caracteres” e de agentes revolucionários.
15. No mesmo ano, em Virginia, um homem escravizado acusado de tramar uma insurreição declarou: “Eu não tenho nada mais a oferecer do que George Washington caso ele tivesse sido capturado pelos britânicos... Eu vivi toda a minha vida para obter a liberdade dos meus compatriotas”.
16. Mesmo fora do Sul, em York (PA), o julgamento de uma mulher escravizada acusada de envenenar os seus senhores brancos levou a incêndios que queimaram uma série de prédios até que um toque de recolher foi imposto à população negra da cidade. Havia mais e mais desses relatos.
17. Exemplos abundam nos primeiros anos do século XIX, em que rumores, sussurros e, às vezes, atos de rebeldia e rebelião de pessoas escravizadas continuaram a aumentar o espectro de uma grande insurreição e de outro “Santo Domingo”, dessa vez nos Estados Unidos.
18. *Esse* é o contexto que devemos compreender da Lei de Insurreição de 1807: uma demanda da classe escravista e de seus representantes políticos por uma proteção federal no caso de uma impensável (mas aparentemente cada vez mais possível) rebelião negra generalizada.
19. Os senhores já esperavam que o gov. federal os protegesse, como a Lei do Escravo Fugido, de 1793, que obrigava oficiais federais a ajudar na captura de fugitivos. A Lei de Insurreição adicionava uma camada de segurança em um período de ansiedade a respeito de um levante negro
20. Sabemos que a instituição do policiamento cresceu enormemente a partir das “patrulhas escravas” (o protótipo para as posteriores formulações do Posse Comitatus Act). Mas e o uso das forças federais para suprimir “insurreições”? Isso é um produto das demandas dos escravistas.
21. O uso mais recente da Lei de 1807? Forças federais foram utilizadas contra os protestos de LA, em 1992, no caso R. King. O poder estatal tem uma longa história de supressão da liberdade negra. Por isso a invocação dela por Trump é extremamente importante, especialmente agora.
22. Obs: O trabalho de Aptheker sobre rebeliões escravas (como American Negro Slave Revolts), bem como o de V. Harding, There is a River, são boas fontes para se iniciar na temática. @JuliaGaffield, @Soccerpolitics, David Geggus, and John Carrigus abordam também a Rev. Haitiana.
23. O livro de @bronaldbyrd é também fantástico. Obrigado pela lembrança, @ProvAtlantic.
24. Obs2: Se você ainda não leu o livro “Os Jacobinos Negros”, de CLR James, você deve fazê-lo. Ele é essencial de diversas maneiras.
25. Nota do tradutor: a Rev. Haitiana é também constitutiva da moldura institucional do Estado brasileiro. Flávio Gomes, Marco Morel, Celia de Azevedo, Luciana da C. Brito, João J. Reis, Luiz G. Silva e outros trabalharam o tema a partir de diferentes enfoques nas últimas décadas
26. Nota do tradutor2: Esse também é meu tema de investigação. Minha primeira parada foi na dissertação de mestrado. Nela, trabalhei como o medo do Haiti é o elemento fundante da noção de cidadania no Brasil a partir da análise da Constituinte de 1823 e da Constituição de 1824.
@silviolual, querido, como você fez um post comentando sobre a Lei de Insurreição, acho que essa thread pode te interessar. Abração para ti!
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