Um dos moradores aqui do prédio é gay (deve haver outros, enfim, são 02 blocos e 64 apartamentos) mas digo isso porque oficialmente ele sempre foi ‘o morador gay do prédio’ Mora aqui desde os anos 80.
Eu o conheço desde que era criança (ok, há décadas), pois moro aqui desde então. Meus irmãos foram casando e saíram. Meu pais se divorciaram, casaram de novo e saíram. Eu fiquei. Na adolescência, eu sabia que tinha o tal morador gay do 4º andar. Vou chama-lo aqui de Roberto.
Ele tem no mínimo uns 25 anos a mais que eu e toda vez que o encontrava no elevador, ele me dizia um ‘oi’ e perguntava do meu pai. Eu dizia tudo bem e ele mandava eu enviar um abraço. Eu agradecia e pronto. A conversa se resumia a isso.
O pessoal do prédio não gostava muito dele. Eu nem sabia o que era homofobia ainda e encarava tudo como má vontade do povo, sei lá. Nas reuniões de condomínio (eu gostava das treta), ele sempre era o ‘do contra’.
Foi num dos encontros no elevador , eu já adolescente, que ele me viu com uma camiseta de Madonna e perguntou se eu tinha visto um show dela que havia passado na tv. Estávamos no início dos anos 90, eu era alucinado pela galega, e obviamente tinha gravado o show no videocassete.
Na época o mundo era analógico e digital só havia o relógio. Quando ele me disse que tinha mais 02 outros shows da mesma turnê de Madonna eu só faltei morrer – eu sequer sabia que haviam outros shows. ‘Tem sim, no japão e na França. deixe uma lá em casa que eu copio pra vc”
No dia seguinte tava eu batendo na porta do apto dele, fita na mão, ansiosíssimo. A empregada me mandou entrar e foi quando descobri que o morador tinha centenas, centeeeeeenas de discos de vinil e fitas de VHS de show em estantes pelas paredes do apto (ninguém tinha cd ainda).
“Oi eu sou o sobrinho de Roberto, vc veio deixar a fita né? Pode vir de noite buscar". Eu, já ligado nas parada, voltei pra casa intrigado com o tal sobrinho , que devia ter 20 e poucos anos e, obviamente anos depois foi que me liguei que era algum namorado dele (pense num boy).
Meu pai nunca quis muita conversa com ele. Mais de uma vez o vi reclamando em casa do ‘viado do Roberto que falava merda na reunião do condomínio" Moradores e porteiros comentavam da bicha do 301, que levava homem pro apto. E eu encantado por tamanha 'independencia' e afronta.
Nunca vi ou soube de qualquer problema com ele. O que eu sabia era o que se dizia: a bicha solteirona, chata, que saia de noite e voltava de madrugada, ás vezes acompanhado. Passados os anos, vida corrida, a gente acaba mal vendo o povo do prédio.
Qual não foi minha surpresa, ano passado e depois de muito tempo sem vê-lo pelo prédio, avistei Roberto velhinho, sem o andar rápido que ele tinha, sentado numa cadeira, olhando fixo pra rua. Quieto. Ao lado dele uma moça de branco.
Quando perguntei ao porteiro o que tinha havido com Gilberto, veio a notícia: “ele ficou cego. Foi fazer uma cirurgia de glaucoma e não deu certo. Perdeu a visão dos 2 olhos”.
Eu fiquei tão arrasado quando soube. Me fez pensar como a velhice pode ser cruel e ainda mais entre os gays. Aquilo me deixou alguns dias desalentado. E toda vez que passo por ele, está lá, sentado, em silêncio, às vezes conversa com a cuidadora.
Já passava da meia noite hoje quando a campainha aqui de casa tocou 02 vezes. Claro que eu gelei e fui até a porta com o cu na mão. Pelo olho mágico, Roberto de pijama. Abro a porta e a vizinha da frente vai logo dizendo ‘ele tá perdido, liguei pro síndico’.
Roberto, de pijama, resolveu dar uma volta – descobri que ele desce sozinho - apesar de cego, e sabe caminhar pelo prédio (ou quase, né, pois vez ou outra para no andar errado e tenta abrir a porta que não é a dele). às vezes fica confuso.
O porteiro sabe de tudo: ‘ás vezes ele não bate muito bem depois que ficou cego. Não tem ninguém. Num casou, num teve filho (me olhando com aquela cara de ‘tá vendo?) A cuidadora morreu de câncer faz 03 meses. Tem 02 irmãos de campina grande que num gostam muito dele”
Mas e quem cuida dele? “Ninguém. Os porteiros ficam ligados quando ele desce e o síndico vai lá uma vez ao dia. Um morador faz café, almoço e jantar e leva no apto dele”. Outro dia o ventilador dele queimou e o cheiro subiu, fui correndo lá”
Deixei ele com o síndico no apto. Já não era a 1ª vez, soube. Por toda a sala, centenas de vinis, cd's e dvds. Tudo organizado, limpo. Uma santa, um quadro com uma paisagem, Uma miniatura de Marilyn Monroe. Sofá largo, mesa de centro, televisão - imaginei quantas histórias ali.
Eu fiquei tão triste com isso. Soube pelo porteiro que vão tentar ligar pra algum familiar – todos na Paraíba, pra ver quem “leva” ele, mas ainda é incerto, se vão querer de fato leva-lo. O gerente do itaú paga as contas dele e a empregada de um dos moradores dá uma geral na casa
Me senti impotente. O porteiro falou que ele não quer ajuda de ninguém . Só aceita a do tal morador porque o conhece desde sempre aqui no prédio. Desceu agora no elevador comigo emburrado e dizendo que queria ir pra casa.” Os moradores do andar, ao menor sinal, já dão o alerta.
Durante esses anos todos aqui no prédio, nunca tivemos uma amizade de fato. Ele sempre foi na dele, andar apressado, cumprimentava os porteiros ou quando algum morador cruzava com ele. Embora calado, me cumprimentava sorrindo e perguntava do meu pai ou dos meus estudos.
Quando eu já tava na faculdade e comecei a sair de noite, vez ou outra cruzei com ele na portaria, altas horas. Meio desconfiado, sempre sozinho, e eu intrigado querendo saber o que ele fazia, pra onde ia, com quem andava.
Lembrei do comentário do porteiro: "ele é intrigado com a família, acho que não gostam dele, também nunca vi amigo aqui" Pensei em confinamento; não esse atual, mas outros. Cuidem-se. Cuidemo-nos. Exercitem seus afetos.

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Aug 15, 2020
Há 02 meses atrás eu fiz uma postagem aqui sobre um morador do meu prédio: Roberto. Contei do choque que tive ao saber que havia perdido a visão dos 02 olhos - já idoso, sozinho em seu apartamento. Gay, solteiro, sem filhos, conflitos familiares. E cego.
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