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Há 02 meses atrás eu fiz uma postagem aqui sobre um morador do meu prédio: Roberto. Contei do choque que tive ao saber que havia perdido a visão dos 02 olhos - já idoso, sozinho em seu apartamento. Gay, solteiro, sem filhos, conflitos familiares. E cego.
Resolvi escrever depois de uma noite em que ele bateu aqui em casa, perdido e desorientado pelas escadas e corredores. Me fez pensar muito em solidão – especialmente na velhice entre os LGBT’s. A postagem original:
A postagem acabou tendo uma repercussão grande. Foram centenas de mensagens perguntando mais detalhes sobre a questão dele com a família, os cuidados, gente se oferecendo pra ajudar, oferecendo abraços. Gente querendo saber sobre acionar a justiça e saber mais sobre Roberto.
E toda a preocupação com a situação dele reflete entre nós, LGBTs, pela questão da velhice – o medo de ficar sozinho, desamparado de alguma forma. É real e bem cruel. E acho que particularmente pra nós é um sentimento que vai rondando toda a vida.
Nas semanas seguintes procurei saber mais da situação dele, mas não consegui muito. De fato ele estava sozinho, apenas com uma cuidadora durante a semana. Nos finais de semana, um vizinho ajudava com a cozinha e uma ou outra coisa. A família, pelo que soube, era de fato afastada
Morador do 4º andar, interfonava pra saber da hora; se era manhã ou tarde, noite ou madrugada. Entre outras coisas, a cegueira fez Roberto perder a noção do tempo, e talvez tenha criado medos. O porteiro dizia que ele temia que alguém o seguisse e adentrasse seu apto, por exemplo
No final de julho, perdido outra vez nas escadas do prédio, foi encontrado por uma moradora. Reclamou que queria alguém pra conversar. Eram 07 da manhã. Foi levado de volta ao apto, que estava arrumado (dinheiro não era problema pra Roberto).
Nesse dia eu soube da intenção dela em fazer uma denúncia de abandono à Promotoria. Foi filmado, como prova da situação e combinamos que iríamos formalizar tudo no Ministério Público.
Passaram-se 04 dias.
Os finais dos domingos são melancólicos, são inseguros. O entardecer, como disse Maria Bethânia, 'é uma passagem, a troca de guarda na Terra'. Nem dia, nem noite. O meio – o instável. E aí finalmente escurece.
Mas não amanheceu. Me pergunto o que se passou, se foi um delírio. Lembrei da sala, os discos todos ali organizados – silenciosos. Passou o Fantástico, talvez não tenha esperado, talvez não quis...ouvir. Da sala para o quarto. Silêncio. As paredes, as quinas – cuidado com elas.
Na escuridão, veio o choque. Foi um barulho tão grande, que os moradores que acordaram no susto pensaram ser a queda de um grande vaso de plantas. Roberto lançou-se na escuridão, sem freio, sem vista (segundos); firme, como o chão que parou toda aquela agonia. Estouro. Silêncio.
Meu quarto, no sétimo andar, fica virado para outro lado. Só soube pela manhã, quando o porteiro do turno me disse à queima roupa. Eu fiquei tão sem ação que só olhava pra o lugar que o porteiro apontava. Já não havia mais nada, tudo limpo, silencioso, apagado. Um choque.
Pouca gente do prédio soube, na verdade, porque de manhã cedo o IML veio e levou tudo. O porteiro que havia trabalhado de madrugada precisou ser atendido, tamanho o horror: ele estava a 2 metros cochilando, mas alerta; e agora toma remédio pra dormir. Não fala sobre o assunto.
Lavou-se tudo depois. A segunda -feira, agora barulhenta, começava. Roberto morou quase 40 anos sozinho em seu apto. Durante anos, nos fins de semana podia-se ouvir os discos dele ecoando
A primeira semana pra mim foi bem difícil. Dormi mal, indo e vindo nas pequenas passagens que tive com Roberto ao longo de anos e anos. Não consegui evitar de pensar sobre o horror daquela segunda-feira, da solidão da velhice do LGBT, no desamparo. Nas histórias todas.
Dias se passaram, a notícia foi se espalhando pelo prédio e muita gente perguntando quem tinha sido. A cada encontro no elevador ou no pilotis, não variava muito : ‘O morador que vivia sozinho no 406’, ‘o senhor do 4º andar’ ‘quem era mesmo? - ah, aquele solteiro... ei quem era'
Escrevo isso como resposta aos que quiseram saber o que aconteceu depois da thread anterior. Roberto pôs fim a um sofrimento que não me atrevo a medir nem julgar– pois de julgamento já basta os que teve em vida. Vai, Roberto, ficam-se os discos e filmes, mas leve os afetos todos
...
Naquela mesma segunda-feira, mas agora já era noite, as luzes do apartamento de Roberto estavam acesas. A família tinha chegado por lá.
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