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O FLA DE DOMENEC - Parte 3: o goleiro também joga

1992, o ano que mudou o futebol.
O Campeonato Inglês virou Premier League, a Copa da Europa virou Champions League. Em Mogi das Cruzes, nascia Neymar.

Mas nada disso importa perto de uma mudança na regra Uma verdadeira revolução
Em junho, a Dinamarca chocou o mundo do futebol com uma improvável vitória na Euro 92, marcando seis gols em cinco jogos.
Um mês e meio depois, a Espanha ganhou o ouro olímpico, com 14 gols marcados em seis partidas.

Entre as duas competições, um abismo...
A Euro 92 representou o auge de uma tendência que vinha varrendo o futebol mundial: uma mentalidade defensiva, burocrática e puramente resultadista vinha fazendo com que o espetáculo ficasse cada vez mais sem sal.
Por isso, o torneio foi o último antes da mudança que abalou o mundo. A partir dali, o goleiro não poderia mais pegar uma bola recuada com as mãos.

O torneio olímpico foi o primeiro com a nova regra em vigor e a Espanha, com Pep Guardiola no meio-campo, venceu em casa.
O início foi difícil. Zagueiros acostumados a recuar para o goleiro a qualquer sinal de perigo tiveram que se adaptar. Goleiros tiveram que se reinventar completamente

As primeiras temporadas nos proporcionaram alguns dos lances mais bizarros da história

Uma escola de futebol, muito bem representada por um homem, já estava à frente do seu tempo. Johan Cruyff também criticou a mudança — como quase todo mundo na época —, mas foi o maior beneficiário.

Com ele, os goleiros já precisam jogar com os pés.
Cruyff foi um dos maiores jogadores da história, um grande técnico, um filósofo que revolucionou o jogo, mas pouca gente sabe que ele também foi goleiro.

Agarrava, inclusive, no terceiro time do Ajax, mesmo depois de sua estreia no ataque do time profissional, aos 17 anos.
Muito além de reflexo e agilidade, ele acreditava que o goleiro precisava ter visão. Aliás, para Cruyff, tudo no futebol era sobre visão.

Como o grande líder que era, ele inclusive convenceu Rinus Michels a trocar o goleiro da Laranja Mecânica.
Na Copa de 74, a Holanda convocou Jan Jongbloed, goleiro de 34 anos do pequeno FC Amsterdam, deixando de fora Jan van Beveren, titular do campeão nacional PSV, oito anos mais novo e nove centímetros mais alto.

A justificativa? Jongbloed era melhor com os pés.
Cruyff — e aquela leitura holandesa do futebol — acreditava que o goleiro é o primeiro jogador de linha e, por isso, precisava participar do jogo também quando o time tem a bola.

Por isso, já treinava para jogar assim muito antes da mudança na regra.
Faz sentido. Uma das ideias principais é gerar superioridade em diferentes regiões do campo para ir progredindo no campo, vencendo linha a linha da defesa adversária. Para isso, é preciso encontrar o “homem livre” por trás da próxima linha. E sempre há um homem livre.
Afinal, se são dez contra dez na linha e (quase) todo time quer ter pelo menos uma sobra na defesa, alguém vai estar livre em alguma região do campo. A grande questão então é movimentar o time de forma que o homem livre possa receber a bola e prosseguir no jogo.
Mas se o homem livre estiver muito distante, sendo impossível se aproximar da jogada a tempo (ou na improvável hipótese de o adversário marcar 100% homem-a-homem, sem nenhuma sobra), há ainda uma outra saída: transformar o jogo em onze contra dez.
Assim, recua-se para o goleiro para reciclar a posse de bola e o jogo recomeça lá de trás. Agora, é possível criar uma situação de homem livre desde lá de trás e progredir vencendo a primeira linha de marcação.
Não é a toa que Pep Guardiola, o grande discípulo do cruyffismo, teve Victor Valdés como titular em seu Barcelona. O espanhol não era um prodígio protegendo a baliza, mas era muito acima da média com a bola nos pés, capaz de acionar os laterais e meias e dar velocidade pro jogo.
Manuel Neuer foi seu titular no Bayern. Um gênio que revolucionou a posição. Um monstro com as mãos, mas também excelente com os pés. Extremamente confortável com a bola, mesmo sob pressão.
Ederson, o titular do Manchester City, foi escolhido a dedo e adiciona um passe longo inacreditavelmente preciso. Você PRECISA pressionar Ederson quando ele tem a bola, ou ele vai te machucar no lançamento. Assim, sempre se cria um homem livre. Sempre!

A importância do goleiro na mecânica do jogo é tão grande que eventuais erros são perdoados. Afinal, se um atacante erra um domínio, o jogo segue. Se o goleiro faz o mesmo, isso provavelmente custará um gol.
Aí todo mundo esquece das milhares de vezes que o goleiro não errou o domínio e deu prosseguimento às jogadas, ajudando o time a progredir e possivelmente a marcar dezenas de gols.
Isso tem a ver com a forma como assistimos futebol. Se você está vendo os melhores momentos e aparece um recuo para o goleiro, você sabe que vai dar merda.

Cria-se, então, uma aversão à saída com o goleiro.
Domenec conhece o problema muito bem. Um dos gols mais famosos que seu NYCFC sofreu foi uma pixotada bizarra do goleirão.

Para jogar assim, é preciso confiar no goleiro, mas não apenas quando o time tem a bola. O camisa 1 também precisa ter visão quando o time é atacado. Ele precisa muitas vezes jogar adiantado e agir rápido para cobrir a linha de defesa.
Atualmente, goleiros são divididos em dois tipos.

O GOLEIRO R é reativo, defende bem a sua baliza, mas não se sente confortável fora dela.
O GOLEIRO A é proativo, tenta prever as jogadas e se posicionar para interceptá-las, mesmo fora da área.
Quando treinou Guardiola no Barcelona, Cruyff contava com um baita goleiro R: Andoni Zubizarreta era um monstro debaixo das traves, mas não queria saber muito dessa história de jogar adiantado ou sair com a bola nos pés.
A lenda diz que Cruyff insistia e colocava o arqueiro para treinar no meio-campo e, assim, melhorar sua técnica e visão de jogo.

Eventualmente Cruyff desmontou o Dream Team e Zubizarreta deu lugar a Carles Busquets, pai de Sergio Busquets.
O novo titular era, no geral, pior que o antigo, mas se encaixava melhor no modelo cruyffista de goleiro ideal.

É claro que o mundo não estava acostumado, então o homem ficou muito mais famoso por seus erros (alguns bizarros) do que pelos acertos.

Busquets se aposentou e virou treinador de goleiros do Barcelona, ajudando no desenvolvimento de Victor Valés e Pepe Reina, outro arqueiro famoso pela habilidade com os pés.
Com tudo isso, é muito provável que vejamos um Flamengo acionando cada vez mais o goleiro com a bola. Jorge Jesus já iniciou o processo e um das transformações mais importantes (e menos faladas) de 2019 foi a adaptação de Diego Alves, indo muito bem de goleiro R para A.
Diego foi, inclusive, uma das principais engrenagens na final do Mundial, quando o Flamengo usou o goleiro constantemente para quebrar a marcação-pressão do Liverpool com distribuições perfeitas para os laterais (homens livres naquelas situações)
É provável que Diego não tenha muitos problemas. Os mais jovens também precisarão melhorar. Nós, que já começamos a ver um novo futebol no ano passado, precisaremos mergulhar e entender ainda mais as nuances.

Todo mundo precisa se adaptar. O futebol está mudando. O goleiro joga!
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