"REFORMADOS" E ROMANOS 13
(1/20) Passei muito tempo dizendo que liberalismo era "bíblico" (especialmente a partir de Rm 13). Aqui, conto um pouco de como passei a questionar essa posição.
*"REFORMADOS" (entre aspas) porque existe divergência entre calvinistas nesse assunto.
(2/20) Desde que me identifiquei com a teologia reformada, vi em diversos estudos e vídeos na internet; em livros e alguns congressos que participei que calvinistas só poderiam interpretar Romanos 13 da seguinte forma:
(3/20) Paulo estaria definindo, nos versículos 1-7, um princípio que limitaria as ações do Estado apenas à aplicação da justiça para "punir o mal e louvar os bons" (geralmente restrito a punir crimes). O que passasse disso, era antibíblico.
(4/20) A maior referência dos estudos que li (tirando uns textos do Instituto Mises) era o teólogo Wayne Grudem, que defende essa visão em alguns livros e, cito aqui "Política Segundo a Bíblia" (2014) e "A Pobreza das Nações" (2016).
(5/20) No livro de 2014, Grudem afirma que o Estado deve focar só em "punir os maus e louvar os bons", e não romper com os "limites da liberdade" - ele conecta aqui textos bíblicos com a Constituição dos EUA, com menção a F. A. Hayek (p. 130-136).
(6/20) Já o livro de 2016 é uma extensa defesa de como o livre mercado é o melhor sistema econômico, usando como base uma série de versículos bíblicos e evidências históricas de que ele "funciona" e leva ao "progresso da humanidade".
(7/20) A menção de conceitos chave do liberalismo como se fossem "previstos" no texto bíblico me deixou curioso. Até que algumas leituras, principalmente de Mark Noll e George Marsden, me deram insights de como essa "interpretação bíblica liberal" se construiu.
(8/20) Noll (org.), neste livro, diz que evangélicos americanos sempre tiveram dinheiro, propriedade e liberdade como pontos centrais do debate sobre ética cristã. Isso gerou um crescimento da igreja sustentado numa adaptação contínua a valores de mercado. amzn.to/3j62vOq
(9/20) Marsden diz que os fundamentalistas, no séc. 19, eram "cegos" a adesão de valores da classe média americana por evangélicos. Isto levou, por ex., a uma luta anti-comunista baseada num "patriotismo hiper-americano" com traços liberais e cristãos. amzn.to/32pWjd9
(10/20) O que Noll e Marsden afirmam em comum é que no séc. 19 surge uma tentativa mais intencional de organizar uma teoria do "Capitalismo Cristão", trazendo a "sabedoria bíblica para o cotidiano". Essa abordagem foi defendida por vários grupos - principalmente os calvinistas.
(11/20) Ambos também afirmam que, em virtude do "Capitalismo Cristão" ter se tornado um tema subjacente da ética cristã, esse "liberalismo bíblico" se espalhou mundo afora, em alguma medida, por livros e missões organizadas por aqueles ligados ao fundamentalismo.
(12/20) Na tentativa de relacionar fé e economia, essa visão ganha reforço da "interpretação canônica" da Economia: Adam Smith teria inaugurado a Economia como ciência, e aquilo que o antecipa é "pré-Smith" (num sentido quase profético) ou o que diverge é "heterodoxia".
(13/20) Essa ideia ainda é bastante difundida (olhe a notícia recente usando-a como premissa). Mas, ela tem sido criticada por não perceber os fatores que formaram o liberalismo. O melhor resumo da crítica é feito pela historiadora marxista Ellen Wood: bit.ly/34mnl7V
(14/20) "Na maioria dos relatos do capitalismo e sua origem, não há origem alguma. [Ele] parece sempre estar lá, em algum lugar; e só precisa ser libertado de suas cadeias - por exemplo, dos grilhões do feudalismo - para poder crescer e amadurecer." (p.4) amzn.to/2DuqRSs
(15/20) A Ellen Wood é suspeita de criticar essa visão "canônica liberal" por ser marxista. Entretanto, diversos historiadores não-marxistas colaboram com essa crítica, e aqui tem as capas de alguns que conheço sobre a formação do liberalismo como teoria econômica e/ou política.
(16/20) E continuam as sugestões de leitura aqui:
(17/20) O erro que quero destacar aqui é o de procurar "base bíblica" para defender um pacote ideológico, por meio da busca de "textos prova" que mostram como uma determinada maneira de ver política e economia é "bíblica" e outra não. Isso é problemático por duas razões:
(18/20) 1. É um erro de interpretação porque presume a mente dos autores bíblicos usar os conceitos de dinheiro, liberdade e propriedade (como também governo e Estado) da mesma forma que nós hoje - e, assim, seria "ordem de Deus" que ser cristão é adotar a ideologia X.
(19/20) 2. Isso resulta em dois erros históricos. Além do anacronismo que vem do erro 1, também acontece o esquecimento (ou até apagamento) de todos aqueles irmãos que eram reconhecidamente cristãos e reformados, mas que têm ou tinham ideias conflitantes com o liberalismo.
(20/20) Só esse ponto 2 dá uma outra thread de exemplos significativos de cristãos reformados com postura que conflita com o liberalismo de Adam Smith. Mas deixa esse papo para outro dia.
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GRAÇA SELETIVA?
Por conta dos protestos antirracistas nos EUA e aqui, tive contato novamente com um texto de um teólogo reformado que denunciava o "mito" Martin Luther King. Ao ler, desconfiei de algumas coisas, que compartilho aqui. Segue o fio 👇
(2011) Sobre MLK, o autor diz: Não se pode "canonizá-lo", "santidade estabelecida pela mídia", "não deixou legado expositivo", "plagiou doutorado", "traía a esposa", "liberal", discursos "não passam no teste da ortodoxia", não é "exemplo de cristão".