O assunto é Victor Hugo, também porque a miséria voltou ao Brasil com Bolsonaro, e só não é pior porque a oposição lutou pelo auxílio emergencial. Um dos romances mais grandiosos de Victor Hugo é "O homem que ri" (1869). A história do homem que foi mutilado por um rei (1)
e é obrigado a rir eternamente porque lhe cortaram a boca e o desfiguraram, é tão grandiosa que serviu de inspiração à criação bem mais tardia do Coringa, de cuja versão mais recente se aproxima muito. Na retórica de Victor Hugo, a sabedoria na maior parte das vezes aparece (2)
no discurso dos personagens, e não apenas na elaboração do narrador ou no fluxo de consciência do herói sofrido e abandonado a si mesmo. O mesmo acontece por exemplo no "Dom Quixote" de Cervantes. O discurso de Gwynplaine, o homem que ri, no parlamento de Londres, (3)
é um dos pontos altos da literatura universal em todos os tempos. Prepare seu coração:
“— O que eu vim fazer aqui? Vim ser terrível. Os senhores dizem que sou um monstro. Não, sou o povo. Sou uma exceção? Não, sou todo mundo. A exceção são os senhores. (4)
Os senhores são a quimera , e eu, a realidade. Sou o Homem. Sou o medonho Homem que Ri. Que ri do quê? Dos senhores. Dele mesmo. De tudo. O que é esse meu riso? É o crime dos senhores e é meu próprio suplício. Esse crime, eu lhes jogo na cara; esse suplício, eu lhes cuspo (5)
no rosto. Eu rio, e isso quer dizer: eu choro.
Parou. As pessoas se calavam. As risadas continuavam, porém mais baixo, levando-o a acreditar que tornavam a prestar certa atenção. Respirou e prosseguiu:
— Esse riso que está em meu rosto foi posto aí por um rei. Esse riso (6)
exprime a desolação universal. Esse riso significa ódio, silêncio forçado, raiva, desespero. Esse riso é um produto da tortura. Esse riso é um riso de violência. Se Satã tivesse esse riso, esse riso condenaria Deus. Mas o Eterno não se assemelha aos efêmeros; sendo o absoluto (7)
ele é justo; e Deus abomina o que fazem os reis. Ah! Os senhores me consideram uma exceção! Eu sou um símbolo. Ó imbecis todo-poderosos, abram seus olhos. Eu encarno tudo. Represento a humanidade tal qual foi feita por seus mestres. O homem é um mutilado. O que fizeram a mim (8)
fizeram ao gênero humano. Deformaram-lhe o direito, a justiça, a verdade, a razão, a inteligência, assim como deformaram meus olhos, narinas e orelhas; como a mim, puseram-lhe no coração um poço de cólera e sofrimento, e na face uma máscara de contentamento. Onde o dedo (9)
de Deus havia tocado, as garras do rei se cravaram.
Monstruosa sobreposição. Bispos, pares e príncipes, o povo é o profundo sofredor que ri por fora. Mylords, eu lhes digo, o povo sou eu. Hoje, os senhores o oprimem, hoje os senhores me vaiam. Mas o que está por vir (10)
é o sombrio degelo. O que era pedra se torna torrente. A aparência de solidez se dissolve. Um estalido, e está tudo acabado. Há de chegar a hora em que uma convulsão romperá sua opressão, que um rugido responderá a suas vaias. Essa hora já chegou — estavas lá, ó meu pai! —, (11)
essa hora de Deus chegou e se chamou República, e a derrubaram; mas ela há de voltar. Enquanto esperam, lembrem-se de que a sequência de reis armados com a espada foi rompida por Cromwell, armado com o machado. Estremeçam. Íntegras soluções estão surgindo, as unhas cortadas (12)
tornam a crescer, as línguas arrancadas voam e se transformam em línguas de fogo espalhadas no vento das trevas, urrando no infinito; os que têm fome mostram seus dentes ociosos; os paraísos construídos sobre os infernos se desestabilizam, as gentes sofrem, sofrem, sofrem, (13)
e o que está por cima despenca, e o que está por baixo se entreabre, a escuridão pede para ser luz, o danado contesta o eleito, é a chegada do povo, eu lhes digo, é a ascensão do homem, é o princípio do fim, é o rubro alvorecer da catástrofe; (14)
isso é o que há nesse riso do qual riem!
Londres é uma eterna festa. Pode ser. A Inglaterra, de ponta a ponta, é uma aclamação. Sim. Mas ouçam: tudo o que veem, sou eu. Os senhores têm suas festas, isso é meu riso; têm alegrias públicas, isso é meu riso; têm casamentos, (15)
consagrações e coroamentos, isso é meu riso; têm nascimentos de príncipes, isso é meu riso; têm o trovão acima de suas cabeças, isso é meu riso.
Como suportar uma coisa dessas! As risadas recomeçaram, desta vez massacrantes. De todas as lavas que lança a boca humana, (16)
verdadeira cratera, a mais corrosiva é a alegria. Fazer mal alegremente: não há multidão que resista a esse contágio. Nem todas as execuções ocorrem na guilhotina, e os homens, uma vez reunidos, seja em uma assembleia, seja em uma aglomeração, sempre encontram em meio a eles,(17)
a postos, este carrasco: o sarcasmo. Nenhum suplício se compara ao do miserável risível. Era por esse suplício que Gwynplaine passava. A hilaridade caía sobre ele como apedrejamento e metralha. Ele era chocalho e espantalho, joão-bobo, alvo. Pulavam, gritavam bis, (18)
rolavam de rir. Sapateavam. Seguravam-se pelo colarinho. A majestade do local, a púrpura das togas, a discrição dos arminhos, a elegância das perucas, de nada valiam ali. Os Lordes riam, os bispos riam, os juízes riam.” (19 - fim)
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Aos indignados com a figura demoníaca apresentada pelo Salgueiro na Sapucaí, eu respondo com o poema “Hino a Satã” do Nobel de Literatura italiano Giosuè Carducci. O poema mostra um satã iluminista, absolutamente necessário em meio ao atraso obscurantista da Igreja. O poema é 🧶
longo, maravilhoso e fiz:
HINO A SATÃ
Giosuè Carducci
A Ti, imenso princípio do Ser, Matéria e
Espírito, Razão e Sentimento.
Quando cintila o vinho no copo como a
Alma brilha no fundo da pupila,
Quando correm a Terra e o Sol e trocam 🧶
palavras de Amor,
E corre o espasmo de um himeneu invisível
que chega aos Montes e fecunda a planície,
A Ti chegam meus cantos atrevidos.
Eu Te invoco, ó Satã! rei do festim.
Volta com teu hissopo, vil Sacerdote!
Volta com teus salmos! Satã retrocede. 🧶
O agro bolsonarento envenena e mata e o MST é o maior produtor de orgânicos do Brasil. O retrato do interior caubói de São Paulo, desenhado por Oswald de Andrade no Capítulo 59 de “Memórias Sentimentais de João Miramar” é hoje ainda mais atual do que à época da publicação (…) 🧶
do livro, em 1924. E alcançou o Brasil inteiro na esteira do bolsoagrarismo sórdido e do sertanojo colonialista. O relâmpago do capítulo deste livro fragmentário e inovador é preciso, iluminador. Oswald escreve:
“59. FAR-WEST
Chapelões e revolvers de último modelo saíam (…)
mecanicamente das telas bulhentas e passeavam calmos nas ruas irrigadas do pó vermelho.
Tabeliães transmissões de papel tostado e selo do império com grilos milionários a saibam quantos.
Pontas contadas em porteiras frigorificavam a alta por neo-companhias (…)
Ah, “A Montanha Mágica” de Thomas Mann. Hans Castorp está à espera de madame Chauchat, à espera de que algo aconteça, e tenta degustar a espera, enquanto Thomas Mann delineia um dos mais perfeitos e poéticos conceitos da literatura universal sobre… 🧶
a espera. E escreve. "Pode-se dizer que ele gastava a semana aguardando durante sete dias a volta de uma mesma hora - e aguardar significa adiantar-se, significa sentir o tempo e o presente não como uma dádiva, mas como mero obstáculo, significa negar e aniquilar o seu valor (…)
intrínseco e saltá-los espiritualmente. Dizem que é enfadonho esperar. Mas ao mesmo tempo, e mais propriamente, é divertido, porque assim devoramos quantidades de tempo sem as viver e explicar como tais. Poder-se-ia dizer que o homem que apenas espera se parece com um (…)
Thomas Mann defende a tese da culpa coletiva da Alemanha em relação ao nazismo e declarou que todos os alemães tinham de pagar. E aí vem um ignorante, um imbecil, um safado como esse Kim Kataguiri, dizer que os alemães erraram ao proibir o nazismo? Thomas Mann publicou (…) 🧶
“A Montanha Mágica” em 1924. O romance se passa entre 1907 e 1914 e nele um homem, nitidamente professando a fé nazista, já lê “A Tocha Ariana”. Em discurso de 1930 (o nazismo chegaria ao poder apenas em 1933), Thomas Mann escreveu que o nazismo era “uma onda gigantesca (…)
de barbarismo excêntrico e crueza de mercado público”, cheio “de primitivismo” e marcado por “convulsões de massa, barulho de boteco, aleluia e repetições mistificantes de chavões monótonos, até que todo mundo espume pela boca”. Isso não lembra algo bem brasileiro? (…)
“Mefisto” é um romance de Klaus Mann, filho de Thomas Mann. Publicado em 1936 na Holanda (o nazismo matou toda e qualquer expressão de arte aceitável), o romance mostra que Klaus já percebia o que energúmenos e protonazistas ainda hoje se recusam a ver ou então minimizam. (…) 🧶
E a Alemanha ainda não havia anexado a Áustria, não havia invadido a Polônia; e muitos líderes no mundo ainda pensavam que era possível negociar com Hitler. Klaus escreve, a certa altura, em palavras visionárias, sangrentas e precisas: (…)
“Pobre país, pois o céu que o cobre ficou escuro. Deus lhe virou o rosto. Uma torrente de sangue e lágrimas passa pelas ruas de todas as cidades.
Pobre país, pois está enxovalhado, e ninguém sabe quando lhe será permitido tornar-se limpo outra vez. Por que penitências, (…)
“A Cidade e as Serras" é o último livro de Eça de Queirós, publicado um ano após sua morte, em 1901. O romance é um divertissement, que aborda as diferenças entre vida rural e vida urbana e não tem as pretensões mais abrangentes e 🧶
(2) fundamentadas de "Os Maias", por exemplo. Mas em determinado momento, quando assume a crítica à desigualdade do mundo, Eça chega a operar com as categorias marxianas de Capital e Trabalho para mostrar a injustiça que impera no capitalismo parisiense. A paulada é 🧶
(3) maravilhosa e extremamente atual. Eça parece, inclusive, reivindicar programas como o Fome Zero, o Minha Casa Minha Vida e o Bolsa Família, sem orçamentos secretos que engordem ainda mais aqueles que já explodem de tanto viver às custas dos que mais precisam de um Estado 🧶