Pelo jeito, o futebol brasileiro decidiu que vale a pena ter um jogo em que o assunto menos discutido, o que menos importa, é o futebol. O tal jogo jogado. Aquilo que deveria ser o mais importante.
É o que acontece quando fazemos as perguntas erradas...
Pelo jeito, o protocolo atual prevê todo tipo de situação, menos uma: surtos coletivos dentro de um elenco.
Pelo que tem sido dito, não há plano para esses casos, não há diretrizes claras, não há linha de corte, objetividade.
Acontece que estamos lidando com um tipo de problema específico: é um problema encadeado.
Isso significa que cada pessoa só é infectada pela pessoa ao seu lado. Ou seja, os casos não aparecem de maneira uniforme e aleatória por aí.
Portanto, se eu te disser que "5% da população está infectada", isso não significa uma distribuição homogênea, em que há uma chance grande de cinco pessoas estarem infectadas em cada grupo de cem.
O mais provável é que alguns grupos tenham zero casos e outros tenham muitos casos
Entender a natureza do problema é fundamental. Há semanas muita gente questiona: "Alguns times não têm nenhum caso, outros têm muitos! Esses clubes não estão se cuidando!"
Mas salto de 0 para 1 caso é maior que o salto de 1 para 10.
Afinal, se não há ninguém infectado, não há como se infectar. Mas quando o vírus entra (e ele pode entrar de várias formas, não adianta ficar tentando ADIVINHAR) e se instala, haverá um surto localizado.
O protocolo de testagem constante é importante justamente para isolar o primeiro caso rapidamente e não deixar o vírus se instalar. Mas a partir do momento que essa parte do protocolo falha (por qualquer motivo), HAVERÁ um surto localizado.
O protocolo não imagina essa parte?
Partimos, então, para o julgamento caso a caso. A decisão do STJD tem parágrafos e mais parágrafos sobre o "protagonismo do Flamengo na volta dos jogos" e o "poder econômico do clube", o que mostra o caráter político da decisão, muito além do debate objetivo sobre o coronavírus.
O que é no mínimo curioso. Afinal, no confronto entre Palmeiras e Flamengo, parece só haver uma coisa menos importante do que o futebol dentro de campo: a saúde das pessoas infectadas.
Quando o debate num campeonato em pandemia não prioriza a saúde e nem a bola, há algo errado.
Na verdade, me parece que perdemos a capacidade de fazer debates profundos e objetivos.
Cada um tem a sua opinião (não necessariamente alinhada com a realidade) e o que acaba decidido é apenas a opinião de quem tem a canetada mais forte (ou a última canetada) em cada caso.
Na minha humilde opinião, não estamos fazendo as perguntas certas.
Em vez de "quando os jogos voltarão?", a pergunta deveria ser "quais parâmetros garantiriam uma volta segura?"
A resposta não é "amanhã" ou "semana que vem", mas "quando a realidade permitir"
Com parâmetros objetivos definindo que realidade é essa, ficaria claro quando voltar.
O mesmo acontece agora. A pergunta não deveria ser "deve ter jogo?", mas "quais são as condições seguras para que um jogo aconteça?"
A resposta nunca seria perfeita. Afinal, há uma preocupação importante sobre como são definidos esse parâmetros.
Mas pelo menos teríamos clareza, transparência e algum nível de consenso.
Não tentaríamos adaptar a realidade à nossa resposta pré-definida sobre "voltar ou não voltar", "ter jogo ou não ter", mas adaptar as nossas respostas à realidade.
Posso estar louco, mas me parece mais lógico.
Mas não. Mais uma vez, vamos no caso a caso. Vamos fazer política, com cada um buscando uma caneta mais poderosa para representar seus interesses.
Não importa a decisão final, ela já nasce errada.
Quem não faz boas perguntas nunca encontra boas respostas...
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Um pequeno país em um canto da Europa tem um peso surpreendente na forma como a gente pensa e sente o futebol. Saíram da Holanda algumas das ideias mais importantes para a nossa compreensão do esporte.
Se hoje falamos tanto em espaço no jogo, é muito graças aos holandeses.
Como já falei aqui, tive a honra e o privilégio de ser o tradutor do livro @Zonal_Marking, do grande Michael Cox, lançado em pré-venda na semana passada pela @EdGrandeArea.
O livro começa falando sobre a influência holandesa no futebol europeu do início dos anos 1990 através de seu principal clube — o Ajax — e de dois ex-jogadores e então treinadores — Cruyff e Van Gaal.
O mais interessante, no entanto, é o mergulho no modo de pensar holandês.
Por que o Flamengo goleia tanto? - PARTE 3: O QUE OS NÚMEROS DIZEM
Os números não são o jogo em si, mas ajudam a entender o que se passa dentro de campo. É preciso ter cuidado, colocar tudo em contexto, mas dá para entender muita coisa a partir deles. Vamos ao mergulho!
Dos 14 jogos disputados pelo Flamengo sob o comando de Renato Gaúcho, 7 foram pelo BR21 e 7 em competições de mata-mata (Libertadores e CdB). Como o time tem se comportado de maneira diferente, a ideia aqui é olhar para esses números de maneira separada.
Por que o Flamengo goleia tanto? - PARTE 2: PORTEIRA QUE PASSA BOI
Meu antigo professor de história tinha uma espécie de frase de efeito. Não importava o assunto que estávamos estudando, em algum momento ele sempre dava um jeito de dizer: "porteira que passa boi, passa boiada".
Nesta série, pretendo explorar por diferentes ângulos a rotina atual de goleadas do Flamengo. Na PARTE 1 (
), detalhei as mudanças de estilo trazidas por Renato Gaúcho até aqui. Hoje quero falar sobre os contextos criados dentro dos jogos.
O 4x0 em cima do Grêmio é um bom ponto de partida. No fim de um primeiro tempo bastante instável, o Flamengo perdeu Bruno Henrique por lesão e Isla recebeu o vermelho. Parecia um cenário terrível, se encaminhando para um segundo tempo sofrido.
Por que o Flamengo goleia tanto? - PARTE 1: CONTROLE E AGRESSIVIDADE
O assunto do momento é aquele: como o Flamengo consegue golear em jogos que nem parece estar dominando durante a maior parte do tempo?
Há muita coisa para falar, então decidi fazer uma série. Começa aqui!
De fato, é quase inacreditável.
Em 14 jogos desde a chegada de Renato Gaúcho, o Flamengo teve 12V 1E e 1D. Mais incrível que isso: fez 45 gols (3,2 por jogo) e sofreu 10 (0,71 por jogo)!
Das 12 vitórias, 8 foram por 3 gols de diferença ou mais.
É normal que um retrospecto como esse gere admiração, um certo choque e até mesmo confusão.
Primeiro, porque são números simplesmente altos demais. Quase impossíveis de se ver por aí — e de se manter no longo prazo.
Gabigol está imparável. Fez 7 gols nos últimos 5 jogos que disputou. Dois de pênalti (ele simplesmente não perde) e outros cinco gols com a bola rolando.
Todos seriam considerados fáceis. Mas será que são simples?
Além do segundo e do terceiro gol contra o Santos, há mais três nos dois jogos contra o Olimpia. Cinco gols depois da marca do pênalti, todos finalizados com apenas um toque! A marca de um artilheiro letal!
Em um mesmo lance, ele faz três, quatro, cinco movimentos. Sabe exatamente o momento em que o passe pode sair, sabe exatamente como os zagueiros tendem a se comportar.
Futebol não é sobre estar no lugar certo. É sobre chegar no lugar certo, na hora certa, do jeito certo.