Faz um tempo que eu não escrevo uma thread de divulgação e hoje deu vontade de fazer uma #FísicaThreadBr sobre Teorias de Grande Unificação. Em linguagem de gente, a pergunta que eu quero responder é:
Do que todas as coisas são feitas?
Essa thread deve ser uma versão simplificada e parcialmente reorganizada do seminário que eu ministrei no curso de Teoria Quântica de Campos II do IFUSP nesse último semestre. Quem quiser ver a parte técnica, clica nos links no final dessa página: fma.if.usp.br/~burdman/QFT2/…
"Do que as coisas são feitas?" é uma pergunta bem antiga. Os gregos tinham algumas respostas pra elas. O Heráclito, por exemplo, dizia que tudo era feito de fogo. Tales dizia que tudo era feito de água. Empédocles propunha quatro elementos: água, terra, fogo e ar
Hoje em dia os físicos preferem um modelo diferente: a gente usa uma "teoria de gauge baseada no grupo SU(3)_C x SU(2)_L x U(1)_Y"
Como você deve imaginar, é um pouco mais técnica, mas faz umas previsões bem legais, e ganhou o apelido carinhoso de Modelo Padrão
Convenhamos que ninguém entende que diabos "teoria de gauge baseada no grupo SU(3)_C x SU(2)_L x U(1)_Y" significa, então vamos pensar de um jeito mais fofinho
O resumo da ópera é que a matéria é composta por dois tipos de partículas: os quarks e os léptons. Quarks são partículas que formam os prótons e nêutrons dentro dos núcleos dos átomos (por exemplo) e os léptons são como os elétrons, que ficam na eletrosfera
Esses são só exemplos. Os quarks que formam prótons e nêutrons são os up e down, mas também tem charm, strange, top e bottom. Esses são mais pesados que o up e o down
Do mesmo jeito, o elétron é só um dos léptons. Ele também tem irmãos mais pesados, o múon e o tau, e cada um desses três vem acompanhado de um neutrino. Os neutrinos são léptons super leves (até ~1995 gente achava que eles nem tinham massa) e sem carga elétrica
Além dos quarks e léptons (que a gente coletivamente chama de férmions) também tem os bósons. Eles são responsáveis pelas interações entre a matéria
O fóton, por exemplo, é quem cuida das interações eletromagnéticas. Os bósons W e Z são responsáveis pelas interações fracas, que ocorrem por exemplo em decaimentos radioativos. Os glúons são lidam com as interações fortes, que mantém os quarks presos nos prótons e seus amigos
Uma coisa particularmente interessante no Modelo Padrão é que as interações eletromagnética e fraca se misturam em energias altas. Aqui, energia alta é por volta de ~250 GeV, o que significa ~250 vezes a energia contida em um próton parado
Com energia contida eu quero dizer no sentido daqula velha história da Relatividade Restrita de que E = mc²: a massa do próton corresponde a uma certa quantidade de energia, e no caso o próton tem mais ou menos ~1 GeV (GeV é só uma unidade de medida conveniente pra gente)
Antes da gente começar a brincadeira de verdade, eu também deveria mencionar que a teoria que a gente usa muda um pouco dependendo das energias que a gente tá lidando. Sabe como quando você vê uma rua de um prédio alto e as pessoas parecem formigas? A mesma ideia acontece com +
as teorias físicas: você precisa dar zoom in e zoom out quando tá lidando em energias diferentes. A técnica que a gente usa pra fazer isso chama "grupo de renormalização", mas os detalhes ficam pra outro dia
O que realmente importa é: a intensidade das interações muda dependendo da energia. Isso é um jeito frufru de falar que, na prática, a carga do elétron é maior quando você tá em energias mais altas
Ah, e vale mencionar que energia mais alta é sinônimo de comprimento menor: quanto menores as partículas, maiores as energias que você precisa pra "enxergar" elas
Ok, feitas as preliminares, vamos ao que interessa: o Modelo Padrão é uma boa teoria?
Certamente é a melhor que a gente tem. Ele permite fazer previsões com uma precisão de outro mundo e descreve praticamente tudo que a gente observa na natureza incrivelmente bem (as exceções provavelmente sendo só a gravidade, a massa dos neutrinos e a matéria escura)
Mas ele é meio bagunçado, né? A gente precisa colocar um zoológico de partículas pra ele funcionar e parece que cada uma delas funciona de um jeito completamente diferente
Por exemplo, só os quarks sentem a interação forte, os léptons não. As interações fracas dos bósons W só são sentidas por partículas que giram no sentido da mão esquerda, as da mão direita nem sabem que existe bóson W. O bóson Z interage com as de mão direita, mas interage mais +
com as de mão direita. O fóton até é legal com todo mundo, mas pra compensar a gente não faz a menor ideia de porque as partículas tem a carga elétrica que tem. Já se perguntou porque toda partículas tem carga proporcional à do elétron? Os físicos já, e a gente não sabe
Por mais que seja uma teoria maravilhosa e com previsões incrivelmente boas, tem muitas coisas estranhas na teoria. É como se você estivesse montando um quebra-cabeça e tivesse as bordas faltando: tudo encaixa muito bem, mas parece que tem algo a mais...
Pois bem, em 1973 o J. C. Pati e o A. Salam propuseram uma ideia (journals.aps.org/prd/abstract/1…): não ia ser super foda se todos os férmions (quarks e léptons) aparecessem juntos na teoria? Como se fossem dois lados da mesma moeda ou algo assim?
Eles investiram nessa ideia e propuseram um modelo em que os léptons eram como um novo tipo de quark (journals.aps.org/prd/abstract/1…). No Modelo Padrão, os quarks podem ser vermelhos, verdes ou azuis (é só pro nome ficar fofinho, eles não são literalmente dessa cor)
No modelo de Pati-Salam, os léptons passam a ser como um quark lilás, de forma que fica todo mundo junto no mesmo saco
Pouco tempo depois, o H. Georgi e o S. L. Glashow propuseram um modelo novo (journals.aps.org/prl/abstract/1…), que tinha uma ideia parecida. Ele ainda separava as partículas em dois sacos, mas por outro lado ele tinha todas as interações juntas em uma só
Ao invés daquele SU(3)_C x SU(2)_L x U(1)_Y esquisito do começo, o modelo de Geogi-Glashow usa um grupo SU(5). Essencialmente, antes as interações fortes aparecem como matrizes 3x3, as fracas como matrizes 2x2 e uma coisa parecida com o eletromag aparecia como números complexos
"Parecida com o Eletromagnetismo" por conta daquela história que Eletromagnetismo e interação fraca se misturam. Essa interação é parte interação fraca, parte eletromagnetismo (o que eu chamei de interação fraca no último tweet tbm tem um pé de Eletromagnetismo)
No modelo de Georgi-Glashow, você junta todas as interações numa matriz 5x5, o que deixa as coisas bem mais organizadas
Tem muitas coisas legais aí: você consegue encaixar todas as partículas do Modelo Padrão, o novo modelo explica porque a carga elétrica é sempre proporcional à carga do elétron (se vem em uma matriz, é fácil de explicar. Se vem em um número complexo, a gente não faz ideia)
Além desse modelo precisar de muito menos parâmetros que o Modelo Padrão. Ao invés de precisar ficar enfiando muitos números à mão pra "configurar" a teoria, o modelo de Georgi-Glashow consegue receber menos e prever os que faltam
Parece tudo muito lindo. Essa teoria, eu gosto de brincar, soa quase como um presente de Natal
E a Natureza é o Grinch
Um problema de você misturar quarks e léptons na sua teoria é que isso envolve misturar prótons e léptons, por exempo. Isso significa que o próton pode decair pra outras duas partículas, como um píon (feito de dois quarks) e um pósitron (anti-partícula do elétron)
Em outras palavras, o próton - que é feito de três quarks (uud: dois ups e um down) - pode virar um píon (d d^c) e um pósitron (e^+). Os dois quarks u do próton são convertidos em um quark antidown e um pósitron
A gente pode calcular no modelo de Georgi-Glashow o quanto tempo isso demoraria. O próprio Georgi fez isso em 1974, junto com o Quinn e o Weinberg (journals.aps.org/prl/abstract/1…), e estimaram que ia demorar uns 10^30 anos pro próton decair
Pra critérios de comparação, a idade do universo é cerca de 10^10 anos. A gente tá falando que em média demora cerca de 100 bilhões de bilhões de idades do Universo pra um próton decair
Bem, como a gente pode saber se esse número tá certo? A gente vai esperar 100 bilhões de bilhões de idades do Universo pra ver se um próton decai?
Parece pouco prático...
Por sorte, ao invés de esperar 10^30 anos pra ver se um próton decai, a gente pode fazer um tanque de água gigante no subsolo pra que ele contenha uns 10^30 prótons e esperar ~1 ano pra ver se algum dos 10^30 prótons decai. Dá na mesma
Então a galera fez isso. Chama Super Kamiokande
Por sinal, o tanque é no subsolo pra evitar que a atmosfera interfira nas medições
E aí? A previsão tá certa?
Pois é... Não. A medição do Super Kamiokande diz pra gente que o tempo de vida médio do próton é de _pelo menos_ 1.6 x 10^34 anos (journals.aps.org/prd/abstract/1…), ou seja, 1.6 milhões de bilhões de bilhões de idades do Universo
Isso é consideravelmente maior que a estimativa do modelo de Georgi-Glashow. Por mais lindo que ele seja, ele não descreve o que a gente observa, e hoje em dia já tá descartado
Mas esse não é o fim do sonho de Grande Unificação, só do modelo SU(5)!
Lembra que eu falei que a ideia do Pati-Salam era colocar todos os férmions no mesmo saco, mas o modelo de Georgi-Glashow usava dois sacos? Pois é: hoje em dia a gente tem outros modelos que ainda estão de pé e usam um saco só
Por exemplo, grande unificação via grupo SO(10). Ao invés de usar dois sacos de partículas e matrizes 5x5, você usa um saco só e matrizes 10x10 (as matrizes são um pouco diferentes tbm)
E essa é só uma das opções. Existem várias outras candidatas. Uma delas, SO(18), também consegue explicar porque o elétron tem aqueles irmãos mais pesados, o múon e o tau. Nem o Modelo Padrão, nem Georgi-Glashow, nem SO(10) tem uma resposta pra isso
Além dessas ideias, também existe a hipótese de supersimetria (SUSY, para os íntimos)
Lembram que eu falei que em Física as teorias mudam dependendo da energia? Se você pegar o Modelo Padrão, as interações forte, fraca e "eletromagnética" se comportam desse jeito:
Em vermelho, você tem o comportamento do inverso do acoplamento da interação forte ao quadrado (eu sei, soa complicado, mas não se preocupa). Em verde são as interações fracas, em azul aquela mistura de fraca e eletromagnetismo
O eixo horizontal é a escala de energia, medida em unidades da massa do bóson Z (uns 90 GeV)
O importante é: tá vendo como as linhas se cruzam em lugares diferentes? Em altas energias, o Modelo Padrão não parece unificar, por mais que elas fiquem "mais ou menos" próximas
Mas esse gráfico é meio ousado também... Ele assume que o Modelo Padrão ainda vale em energias super altas (da ordem de 10^15 GeV) como se não tivesse nada de novo aparecendo nesse meio! A gente não tem como saber se isso é verdade
Se aparece algo desconhecido no meio do caminho, pode ser que o esquema mude
A hipótese de supersimetria diz que aparece. Ela é motivada por outros aspectos (que tem a ver com o bóson de Higgs, por exemplo, mas fica pra outro dia) e prevê, em poucas palavras, que toda partícula tem um parceiro supersimétrico
Cause everybody needs a friend
Cada férmion vai ter um colega bóson, e cada bóson vai ter um colega férmion. O fóton vai ser amigo do fotino, o elétron do selétron, os quarks dos squarks, e por aí vai
Com essas partículas novas (que até hoje não foram observadas), a teoria funcionaria de outro jeito em altas energias. Aquele gráfico de uns tweets atrás vira esse aqui
Dessa vez, as três constantes essencialmente se unificam em uma só, o que encaixa super bem com as ideias que a gente tava tendo. Mais do que isso, o tempo de vida médio do próton fica maior, e compatível com o que a gente observou até agora
Isso significa que GUT e SUSY estão certas?
Não. Essas teorias são todas super recentes e são tema de pesquisa ativa. Pode ser que elas sejam a chave pra nós entendermos melhor o que se esconde lá dentro dos átomos, mas pode ser que não
Ciência é feita de não saber e de aprender com seus erros. Talvez a gente esteja no caminho certo, mas talvez daqui a uns anos o Super Kamiokande tenha medições melhores e a gente tenha que jogar mais algumas teorias no lixo
Essas motivações teóricas não dizem se o que a gente tá fazendo tá certo. Quem decide isso tudo é o Universo. Porém, elas servem como umas dicas de "Hmm, parece que vale a pena olhar isso aqui"
Esse mesmo tipo de motivação de "A teoria precisa fazer sentido" foi o que levou o Einstein a criar a Relatividade Geral (porque a Gravidade do Newton não era compatível com Relatividade Restrita) e o truque pro Gell-Mann entender as interações fortes
(ele usou uns argumentos inspirados nessas ideias de como as matrizes se comportam e coisas assim)
Estamos no caminho certo? Ninguém sabe. A grande diversão de fazer ciência é essa emoção de ter que arriscar, torcer e trabalhar super duro pra só depois descobrir se o Universo gosta das ideias que você teve
Estando certo ou errado, no final do dia você aprende algo novo. Um pequeno sonho meu é poder descobrir ainda em vida se GUTs e SUSY descrevem o mundo que a gente vive
Pra quem se interessar, vou deixar aqui no final mais algumas referências que eu usei preparando o seminário (em adição aos papers que eu fui soltando ao longo da thread)
- Cheng, T.-P. & Li, L.-F. Gauge Theory of Elementary Particle Physics.(Oxford University Press, New York, 1984)
- Greiner, W. Gauge Theory of Weak Interactions. (Springer, Berlin, 1996)
- Langacker, P. Grand unification.Scholarpedia 7. revision #137135, 11419 (2012)
- Mohapatra, R. N. Unification and Supersymmetry: The Frontiers of Quark-Lepton Physics. (Springer, New York, 2003)
- Particle Data Group et al. Review of Particle Physics. Progress of Theoretical and Experimental Physics 2020. 083C01 (Aug. 2020)
- Peskin, M. E. & Schroeder, D. V. An Introduction to Quantum Field Theory. (Westview Press, Boulder, 1995)
- Ross, G. G. Grand Unified Theories. (Benjamin/Cummings, Menlo Park, 1984)
- Russell, B. History of Western Philosophy. (Routledge, London, 2004)
- Schwartz, M. D. Quantum Field Theory and the Standard Model.(Cambridge University Press, Cambridge, 2014)
- Zee, A. Unity of Forces in the Universe. (World Scientific, Singapore, 1982)
- Zee, A. Quantum Field Theory in a Nutshell.(Princeton University Press, Princeton, 2010)
- - Zee, A. Group Theory in a Nutshell for Physicists.(Princeton University Press, Princeton, 2016)
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Inclusive, um dos males de ter estudado GUT tão intensamente é que eu fiquei muito tentato pela teoria e tenho a impressão que um dia eu vou trabalhar um tanto com isso
Pelo visto não é fácil você passar duas semanas estudando Física de Partículas com certa intensidade e não se deixar levar pela diversão da coisa
O que nota de diferente em você com ou sem remédio para depressão? — Acho que vou responder no Twitter curiouscat.qa/nickfismat/pos…
Isso depende bastante do período. A maior parte desse ano eu passei sem medicação e não tive problema nenhum. Eu tava mentalmente estável, apesar de tudo
Porém, esses últimos meses foram bem mais complicados por conta do estresse de sair da USP e várias inseguranças de "Por que eu tô ficando no Brasil?", "Eu não tenho capacidade de ir pra fora?", "Eu tô com medo?", "Eu tô sendo covarde?", "Eu sou insuficiente?", e por aí vai
O que você acha da matemática da TQC? — O objetivo da Física não é ser matematicamente belo ou correto, é descrever a realidade. Pra quem estuda os detalhes matemáticos, TQC não faz sentido. Pra quem quer fazer previsõ… curiouscat.qa/nickfismat/pos…
Reclamar de um curso de Física por ele não ser rigoroso não é apontar um defeito do curso, é apontar que você não entendeu nem a pergunta que o curso quer responder
Em Física, o rigor é um meio para chegar ao objetivo de descrever o Universo, não uma necessidade
Eu quero tentar fazer uma coisa e ver no que dá a longo prazo: vocês sabiam que a Física que conhecemos hoje prevê que partículas podem ser criadas e aniquiladas? (1/n)
A ideia é o seguinte: duas das mais importantes (e confiáveis) teorias que temos hoje em dia são a Mecânica Quântica e a Relatividade Restrita (2/n)
Um dos resultados importantes da Mecânica Quântica é o Princípio da Incerteza de Heisenberg, que é essa fórmula aí da foto. Parece complicado, mas eu prometo que não é não (3/n)