Hora daquelas threads sobre temas "espanta-seguidor", como bem observou o @danielpsms. Dessa vez, sobre impacto social de políticas tributárias.

Na direita-br, ainda há um bom espaço para discutir como políticas públicas podem ser desenhadas para serem mais pró-família.
Embora todo imposto retire dinheiro da sociedade para o estado, há diferentes modos de fazer isso, com consequências piores ou melhores. Em vez de simplesmente bater na tecla de cortar imposto (o que nem sempre é possível), há muito espaço para desenhar melhor a coisa.
Eu já escrevi sobre como uma dose "progressividade" nos impostos faz sentido (isto é, quem ganha mais, paga uma proporção de impostos), pois pode funcionar como um jeito de aliviar as famílias de baixa renda e diminuir a necessidade de assistência social.
Porém, a progressividade tributária pode também se tornar um mecanismo para incentivar os dois membros de um casal a trabalharem, diminuindo a quantidade de mães que fica em casa com as crianças.

E, na verdade, em países onde o sistema foi desenhado de modo bem consciente...
... como o Canadá, isso foi efetivamente pensado como um instrumento para avançar as pautas de gênero (afinal, se apenas um dos pais trabalharem a probabilidade da mãe ficar em casa é maior, aumentando a desigualdade de renda entre homens e mulheres).
Para entender como isso ocorre, é preciso entender como progressividade tributária funciona (e esse é um ponto onde as pessoas geralmente se confundem).

Uma explicação ultra-resumida: o sistema progressivo cria várias faixas de tributação. É como se você pegasse a sua renda e...
... dividisse em várias camadas. Cada camada seria tributado em uma taxa diferente. Quanto mais camadas, mais tributos na camada de cima (as de baixo permanecesse iguais, para evitar desincetivo ao aumento de renda).

Um exemplo super simples seria o seguinte: até mil reais...
... você não paga nada de imposto. De mil a 2 mil, você paga 10%. De 3 mil a 5 mil, você paga 25%, etc.

Nesse modelo, se receber 800 reais, você não paga nada. Se você receber 1,100 reais por mês, você paga apenas 10% em cima dos 100 acima da isenção (ou seja, 10 reais).
Novamente, o mundo inteiro adota uma variação disso. O que faz algum sentido, pois evita esmagar os mais pobres com muito imposto.

Mas aí entre o elemento onde essa tributação pesa nas famílias: esse sistema tende a "achatar" os salários, de modo que praticamente obriga a ter..
... duas rendas por família.

Isso acontece porque, na medida em que sua renda vai subindo, os aumentos se tornam pouquíssimo relevantes. Quando você chega próximo de uma taxa marginal de 50% mais contribuições sociais, cada novo aumento traz só um pouquinho de dinheiro.
Em paralelo, isso cria um incentivo alto para entrar no mercado de trabalho mesmo se sua renda for bem baixa, já que você vai ser menos tributado.

Ou seja, uma família com um pai recebendo 5 mil terá menos dinheiro do que a família onde o pai recebe 4 mil e a mãe recebe mil.
(Sim, estou usando exemplos bem "sexistas" e sei que muitas mulheres ganham bem mais que os homens -- mas a diferença de sexo aqui é altamente relevante para o argumento, pois geralmente a maioria das mulheres PREFEREM ficar mais tempo com os filhos, mesmo as que ganham mais).
Novamente, esse tipo de política foi desenhada de propósito. A intenção era semi-capitalista, semi-progressista: ao incentivar as mulheres a entrar na força de trabalho, isso aumenta a oferta de mão-de-obra, derrubando os salários e aumentando o retorno do capital.
Obviamente, o pressuposto é que ficar em casa com os filhos é um trabalho de "menos valor" -- afinal, é algo que não aparece no PIB, já que não há troca econômica entre mãe e filhos, como ocorre entre pais e escolas.

Porém, é óbvio que o pressuposto é errado, pois...
... inúmeras pesquisas mostram que a maioria das mulheres (não todas, é claro), depois de ter o primeiro filho, prefeririam trabalhar menos, mas não podem fazê-lo por pressão econômica. Ou seja, essa é um política que está claramente indo contra o desejo expresso das mulheres.
É verdade que, para diminuir essa distorção, se a família tiver apenas uma renda, os sistemas tributários modernos permitem que quem ganhar dinheiro use a faixa de isenção do parceiro, declarando-o como "dependente". Porém, esse é um alívio muito pequeno, já que afeta...
... apenas a primeira faixa de tributação, além de só funcionar se a renda do parceiro for efetivamente zero, desincentivando quem ficar em casa a fazer uns bicos em vez de procurar emprego formal.
Nesse sentido, o que eu acho que seria realmente inovador seria criar um imposto de renda familiar. Quem quiser declarar como uma família, deveria receber um incentivo maior: além da isenção básica, poder dobrar também as faixas de progressão tributária.
Obviamente, o buraco no Brasil, como sempre, é mais embaixo -- há muitas distorções e excessões mais simples de resolver primeiro. Mas acho que trabalhar nessa direção seria muito boa: basicamente ver a família como uma unidade legal e não apenas um contrato entre duas partes.

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9 Sep
Palpite (ênfase no título):

Por mais que alguns se decepcionem com Bolsonaro, não acredito que sua base vai se esvaziar por um motivo bem simples: é o único político de direita com projeção nacional.

Isso era verdade em 2016 e continuará verdade em 2022.
Muita gente bate no Bolso sem deixar claro qual a alternativa que partilhe dia meus valores da base.

É como se você tentasse conversar o adversário a torcer para o atacante do seu time a fazer gol dizendo que ele é o melhor craque em campo.

Não é assim que funciona.
Toda a terceira via é baseada nesse engodo. “Fulano é mais competente, grande gestor, etc.”

Ok, mas se vai jogar contra mim, é até pior saber que o cara é bom.
Read 6 tweets
7 Sep
Quem tinha razão mesmo era o Olavo. A situação atual do Brasil bate direitinho com a tese dele sobre a revolução brasileira.

Em linhas bem gerais, é a tese que o grosso da população está revoltada contra o estatemento burocrático e quer uma nova ordem política. Porém, ...
... essa população não tem ainda líderes, partido ou militância organizada.

Na falta disso, Bolsonaro se tornou um símbolo para essa gente. Mesmo na presidência, ele não lidera o movimento. Ele simplesmente simboliza a revolta popular contra o sistema.
Creio que o próprio Bolsonaro não entendeu onde ele se meteu. Ele pensou que ia ser um político como os outros, governando o país por meio de acordões, mas com menos roubo e mais “decisões técnicas” — uma visão totalmente ingênua e deslocada da situação.
Read 11 tweets
4 Sep
Não consigo imaginar as consequências desse sete de setembro. Suponho que vai dar muita gente nas ruas, mas já teve protestos numerosos várias vezes e o STF só dobra a aposta.

Por um lado, sempre achei que há um risco do STF declarar Bolsonaro inelegível, para tirá-lo da…
… disputa antes da eleição, mas um número forte de manifestante pode barrar isso, já que vai retirar a legitimidade das eleições.

Além disso, essas pesquisas mostrando uma vitória de Lula e urnas inauditáveis indicam que as eleições com Bolsonaro seriam o caminho…
… com mais aparência de legitimidade para garantir o retorno do PT.

Mas também é bizarro imaginar que as pessoas engoliriam Lula retorno, tendo perdido totalmente a capacidade de mobilização popular, que está toda do lado da direita.
Read 8 tweets
4 Sep
Estava assistindo a série do Gad Elmaleh, baseada no esforço dele mesmo, enquanto comediante francês mega-popular, de se estabelecer nos Estados Unidos, e simpatizei de imediato com algo: ninguém liga para o que ele fez antes de chegar lá.

Lembrou muito minha experiência nos…
… EUA (e, em bastante menor grau, aqui no Canadá). Eles não fazem por mal, e não é exatamente de um jeito arrogante, mas eles sempre presumem que o centro do mundo é os EUA, então você ser o número 1 em algo na periferia não quer dizer muita coisa.
De novo, é difícil explicar, porque sei que isso soa como mega-arrogante, mas não é isso. É como se fosse uma espécie de “desinteresse gentil”, meio compaixão paternalista, meio “bom, o que é importante é que AGORA VOCÊ ESTÁ AQUI, vai dar tudo certo, parabéns”.
Read 6 tweets
2 Sep
Quando lembro da época da escola, tenho dificuldade de acreditar que aquele absurdo era real. Quem é que, querendo aprender uma coisa nova, decidiria passar o dia tendo palestras em intervalos regulares?

Em vez de abrir um livro ou dar uma googlada ou ligar para um amigo…
… o sujeito pensa: “já sei, vou assistir duas palestras por semana, fazer umas tarefas arbitrárias e continuar nessa por alguns anos”.

É a receita para ter uma mega brochada intelectual. Não há conexão alguma com a realidade, nada de prática, supervisão, experimentação.
É só ver o seguinte: que empresa de sucesso criou um sistema parecido com uma sala de aula para treinar seus funcionários? Nenhuma, claro.

Se o assunto é teórico, você tem que estudar por conta própria e discutir com um orientador. Se é prático, você precisa observar…
Read 5 tweets
2 Sep
Uma coisa que me surpreendeu: criança brinca muito menos do que eu esperava. Ou, mais especificamente, na brincadeira está sempre misturado elementos que vão bem além do meramente lúdico: tem uma dose enorme de exploração, testar limites, aperfeiçoar habilidades.
Claro que há também “brincadeiras puras”, onde rir é a motivação principal, mas mesmo aí tem um elemento de socialização, interação, e parte da graça é partilhar do mesmo clima que a gente, ver que estamos todos rindo juntos.

Mas isso só entretém mesmo a criança por uns…
… minutos, pois ela logo quer se concentrar na nova habilidade: segurar algo, tentar se levantar, etc.

Na verdade, o que ocorre é que todos os ciclos delas são bem acelerados no início. É como se elas tivessem quatro dias em um (marcado pelas sonecas). Entre um…
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