O dia em que oito jovens foram assassinados por policiais: a chacina da Candelária.
Em julho de 1993, um grupo formado por mais de 70 crianças e jovens, com idades variando dos 6 aos 20 e poucos anos, utilizavam a frente da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, como local de descanso. Todos eram moradores de rua com dificuldades para sobreviver.
Na madrugada do dia 23 daquele mês, enquanto o grupo dormia em frente à referida igreja, cinco indivíduos adultos, ocupando dois carros com as placas cobertas, se dirigiram ao local. Ao chegarem, os sujeitos começaram a disparar contra os jovens indefesos.
Diversos garotos foram alvejados à queima-roupa. Dentre eles, apenas um não morreu na hora: o jovem conhecido como “Come-Gato”, que atuava como o líder do grupo. Ele foi levado ao hospital em estado grave, mas sobreviveu por apenas 4 dias antes de sucumbir aos ferimentos.
Os sobreviventes informaram que os perpetradores do massacre buscavam especificamente por Come-Gato no ataque. Os homicidas, então, sequestraram três jovens. Eles foram levados à região do Museu de Arte Moderna, no Aterro do Flamengo, onde foram alvejados.
Uma das vítimas levadas pelos assassinos sobreviveu à execução: Wágner dos Santos, de 21 anos, foi atingido por 4 disparos, incluindo um no rosto, mas resistiu. No total, oito meninos, entre 11 e 19 anos, dos quais seis eram menores de idade, foram assassinados.
Além disso, dezenas acabaram feridos. A artista Yvonne Bezerra de Mello recontou a ocasião. Ela informou que, naquela noite, deu “a três garotos uma ficha telefônica para eles me ligarem, se acontecesse alguma coisa.” Mais tarde, recebeu uma ligação: “Eles tão matando a gente!”.
Era o que gritavam alguns meninos ao fundo. Ao telefone, um deles requisitou: “Tia, vem pra cá. Estão nos matando”. Mello, que realizava trabalhos sociais com jovens necessitados, conta que chegou para ver os sobreviventes desesperados, correndo e sacudindo as crianças mortas.
As investigações evidenciaram que os executores eram policiais à paisana. A motivação? O PM Marcos Vinicius Emmanuel, que fazia a segurança de uma manifestação próxima à igreja, desconfiou que o Come-Gato escondesse cola de sapateiro, e o confrontou.
Após abordá-lo, uma discussão acalentada eclodiu e a PM acabou prendendo um outro jovem por suspeitas de que teria fornecido a suposta droga. Um dos garotos, revoltado com a prisão, teria atirado uma pedra numa viatura, e também foi levado à delegacia.
Lá, ambos foram liberados, pois, à época, o consumo de cola não era ilegal; contudo, uma parte do departamento decidiu punir os garotos de outra forma: promovendo uma chacina contra eles e as pessoas com quem conviviam e sobreviviam juntos.
Porém, há uma outra teoria que define uma motivação mais contundente ao massacre: na verdade, os policiais envolvidos, que integravam o 5º Batalhão da PMRJ, também atuavam na quadrilha operada no âmbito do regimento, que estaria envolvida com mortes por encomenda e tráfico.
Yvone de Mello afirma que essa foi a real razão da chacina: “Os policiais traficavam cocaína, e alguns dos garotos mais velhos os ajudavam”, e que, por conta de uma dívida, decidiram cobrá-la massacrando o grupo.
Na tarde daquele dia, um carro com alguns indivíduos não identificados passou em frente ao local em que os jovens se alocavam avisando que ocorreria um ato de ordem violenta ali após algumas horas, razão pela qual Mello deu seu número para que pudessem contatá-la do orelhão.
Inicialmente, foram indiciadas três pessoas pela consumação do massacre: dois PMs e um serralheiro. Todos responderam ao processo presos; contudo, foram inocentados três anos mais tarde, quando um dos envolvidos confessou o crime e acusou os outros participantes.
Nelson de Oliveira dos Santos assumiu sua participação e acusou os PMs Marco Aurélio Alcântara, Arlindo Afonso Lisboa e Marcus Vinicius Emmanuel, assim como o ex-PM Maurício da Conceição Filho, conhecido encarecidamente como “Sexta-Feira 13”.
Conceição Filho foi expulso da PM em 1990 por tortura e, em 1994, morreu em tiroteio com policiais durante sua participação num sequestro. Arlindo evadiu julgamento pela chacina e recebeu pena de apenas 2 anos pela posse de uma das armas usadas no crime.
Marco Aurélio foi condenado a 204 anos de reclusão. Nelson de Oliveira, que se entregou, após sucessivos recursos de sua parte e do Ministério Público, pegou pena de 45 anos – 27 pelas mortes e 18 pela tentativa de homicídio de Wagner dos Santos.
Ambos foram soltos por indulto judicial após cumprir 14 anos de pena. Marcus Emmanuel, por sua vez, foi apontado como o líder da operação e condenado a 300 anos de reclusão; todavia, foi solto após servir apenas 18. O MP recorreu para que não fosse beneficiado com o indulto.
O Superior Tribunal de Justiça retirou o benefício e requereu que fosse preso novamente; no entanto, ele permanece foragido desde sua libertação. Durante a investigação e os julgamentos, Wagner dos Santos, sobrevivente do massacre, foi a testemunha chave para a acusação.
Por essa razão, no ano seguinte à chacina da Candelária, Wagner foi vítima de novo atentado, ocorrido na Estação Central do Brasil, onde foi alvejado por mais quatro disparos. Novamente, ele sobreviveu, e foi colocado no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.
Atualmente, ele permanece vivo e mora na Suíça, sob a proteção do governo, recebendo três salários-mínimos mensalmente. “Ele é cego e surdo de um lado do rosto e sofre de traumas severos”, contou sua irmã, criadora da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência.
No ano de 2001, Yvone estimou que estimou que 39 das 72 crianças que dormiam na Candelária à época da chacina haviam morrido. Em 2013, pesquisa de grupos ligados à ONG Anistia Internacional informou que 44 dos jovens teriam morrido de forma violenta.
Em 2018, a atriz disse acreditar que quase todos os membros do grupo estavam mortos, e que teria perdido seu último contato com um deles, vítima de uma bala perdida. Inclusive, um dos jovens era Sandro Barbosa do Nascimento, que protagonizou o sequestro ao ônibus 174.
Após a tragédia, foi criado o movimento “Candelária Nunca Mais”, que realiza manifestações com o tema “Vidas Negras nas Ruas Importam”, que busca, entre outros objetivos, justiça social a jovens negros e pobres expostos à brutalidade policial, relembrando as vítimas da chacina.

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