Hoje é o Dia Mundial sem Carro. Há 100 anos, todos os dias eram. No futuro, como explicaremos esse vício no uso cotidiano de máquinas de 1 tonelada, perdulárias no gasto de energia e espaço, geradores de milhares de mortes, poluição do ar e crise climática?



Um fio 🚶‍♂️🚶🚶‍♀️
O carro nasceu para ser um produto de luxo. Visava propiciar aos burgueses muito ricos um privilégio até então inédito: viajar a uma velocidade muito maior que a dos outros. Transformava em mercadoria diferenciada algo que antes era difícil comprar em larga escala: tempo.
Comprando um carro, o banqueiro ou industrial passava a economizar tempo. Ganhava, ainda, um novo elemento de distinção e a sensação de poder. Ocorre que o luxo, como observou André Gorz, “é impossível de ser democratizado: se todos ascendem ao luxo, ninguém tira proveito dele”.
Gorz compara automóveis a castelos e mansões: “Ao contrário do aspirador de pó, do rádio ou da bicicleta, que retêm seu valor de uso quando todos possuem, o carro, como uma mansão à beira-mar, é somente desejável e vantajoso a partir do momento em que a massa não dispõe de um.”
De modo que a história do automóvel diz respeito à universalização do que nasceu para ser restrito – processo que foi levado a cabo durante mais de cem anos, com enorme sucesso nos objetivos de venda a despeito dos resultados cada vez piores na entrega da proposta de valor.
Chamemos a isso de mal estar do automóvel: a diferença entre as promessas oferecidas e as entregas concretas aos novos proprietários cresce à medida que o carro se universaliza. Quanto mais carros são comprados, menos eles atendem aos desejos que motivam a compra.
Essa não é uma contradição pequena. Produtos que não entregam o que oferecem correm risco de caírem em desuso. Mas a difusão do automóvel interessava especialmente à indústria do petróleo, pois transformaria cada pessoa em cliente potencial de seu produto.
A estratégia para enfrentar o mal estar do automóvel foi tornar o supérfluo necessário. E a ferramenta utilizada foi o urbanismo: abrir largas avenidas, construir viadutos, espraiar as cidades em novos bairros periféricos. A ampliação da infra-estrutura rodoviária urbana…
… induzia a mais carros; o que tornava os centros cada vez mais inóspitos; enquanto novos bairros nos subúrbios e condomínios ofereciam maior qualidade de vida – para quem tivesse carro! O urbanismo automobilista batia com uma mão e oferecia o curativo com a outra.
O filósofo Ivan Ilich buscou resumiu a dinâmica assim: “Ao ultrapassar certo limite de velocidade, os veículos motorizados produzem distâncias que só eles podem reduzir. Produzem distâncias às custas de todos, portanto as reduzem unicamente em benefício de alguns.”
A busca por fazer parte do seleto clube que tem as distâncias reduzidas foi enorme. Ter um carro foi se tornando necessidade, não só para quem fosse morar “junto à natureza”, mas para todos que pretendessem viver decentemente na cidade, se locomover e acessar serviços.
Quem não aderisse ao carro, que seguisse penando nos centros poluídos e barulhentos (graças aos automóveis), que caminhasse em territórios destroçados pelas obras rodoviaristas, que ficasse dependente de ônibus demorados para chegar em lugares aonde antes não era necessário ir.
A esse processo Jane Jacobs chamou “erosão das cidades pelos automóveis”. A erosão é paulatina, como que por garfadas. Cada mudança feita para melhorar o trânsito de veículos piora a vida pedestre. Como resultado, as mudanças urbanas induzem a mais carros e demanda mais obras.
No ano seguinte, Anthony Downs formulou a Lei Fundamental do Congestionamento. O economista demonstrou que a demanda por automóveis em centros urbanos é elástica, de modo que o aumento da oferta induz ao crescimento da demanda, tornando nulo o ganho desejado.
Estava empiricamente demonstrado em 1962 que, por mais que se construíssem avenidas, viadutos e vias expressas, o resultado seria o preenchimento da nova infra-estrutura em poucos anos, retornando o trânsito para a velocidade anterior. Na verdade, isso já havia sido anunciado.
Nos anos 1920, engenheiros nos EUA alertaram que as novas rodovias “iriam ser preenchidas imediatamente pelo tráfego que atualmente é represado pelos congestionamentos”. Representantes da indústria automotiva responderam que esta era “uma perspectiva interessante para as vendas”.
A massificação dos carros tem consequências sociais e políticas. Trata-se de uma solução individual cuja adoção contribui para agravar na esfera coletiva o problema que buscava resolver. Há nela uma necessária negligência da coletividade e um fortalecimento do individualismo.
De modo que a disseminação do automóvel promoveu, retornando a Gorz, o “triunfo absoluto da ideologia burguesa no que tange à prática cotidiana: ela constrói e mantém em cada um a crença ilusória de que cada indivíduo pode prevalecer e tirar vantagem à custa de todos”.
A ideologia individualista que prospera com o automóvel resulta de um problema básico de espaço. No mesmo espaço em que um ônibus transporta 45 pessoas confortavelmente, dois carros transportam, em média, três. Em territórios adensados, esta ineficiência demanda exclusivismo.
O motorista entende que cada novo carro nas ruas piora as condições de trânsito e, no fundo, torce para que outros não alcancem o mesmo que ele. O mal-estar do automóvel fomenta, além de frustrações, a guerra íntima contra os outros e o desejo de manutenção de um privilégio.
O contrário ocorre com o transporte coletivo. Trafegar sozinho em um ônibus não traz grandes vantagens. Até o limite de saturação, cada novo usuário não incomoda. Ao contrário, significa, em condições de boa gestão, redução da tarifa e ampliação da oferta de horários.
De modo que, para entregar o que promete, o automóvel fomenta individualismo e requer desigualdade, enquanto o transporte coletivo produz coletividade e requer compartilhamento. O ônibus é como uma praça em que a convivência é negociada. Nos carros, o outro é visto como inimigo.
A pressão exercida sobre motoristas faz do trânsito uma guerra de todos contra todos, mais ou menos controlada pelas normas e leis. Em culturas democráticas frágeis, a civilidade perde para a pulsão individualista. As regras de trânsito, assim como os demais carros…
…são vistas como empecilho para a efetivação das promessas de empoderamento e velocidade vendidas ao motorista. Disso resulta, por exemplo, o ódio disseminado aos radares de trânsito e uma conversa ressentida que circula no Brasil sobre “indústria das multas”.
O autoritarismo político encontra-se com a violência automobilista. Desde muito Jair Bolsonaro alimenta a indignação contra toda forma de controle ao trânsito. Eleito presidente, conseguiu afrouxar nossa legislação de trânsito, intensificando a selvageria nas estradas.
O bolsonarismo ilustra muito bem a relação entre patriarcado e automobilismo. O carro não nasceu para ser um produto de luxo de qualquer pessoa, mas de banqueiros e industriais. Sua difusão não atendeu a interesses quaisquer, mas aos de certos bilionários do norte global.
A difusão do carro foi estruturada em torno da família patriarcal – o pai de família que vai ao trabalho de carro, a mulher que cuida da casa. São majoritariamente homens os proprietários dessas máquinas exclusivistas, que causam tão mal aos territórios onde prosperam.
Há relação direta entre tempo gasto no trânsito, gênero, cor da pele e classe social. Quanto mais rico se é, menos tempo se perde. Mulheres pobres e em maioria negras, habitantes das periferias longínquas que o espraiamento automobilista gerou, são as que mais gastam tempo.
Mulheres são hoje pouco mais de 1/3 das pessoas com carteira de habilitação no Brasil, mas respondem por ínfima parte dos acidentes e mortes. Segundo a InfoSiga, apenas 6,4% dos acidentes graves no estado ocorreram com motoristas mulheres em 2017, contra quase 94% dos homens.
A cultura automobilista dá vazão e fomenta as chamadas masculinidades tóxicas – subjetividades individualistas, irresponsáveis e objetificadoras do outro, em busca do prazer a todo custo, que desde muito investiram no carro como meio de poder, distinção e violência.
É comum se evocar a importância da indústria automobilística na geração de empregos e na atividade econômica. De fato, trata-se de um setor com uma cadeia extensa. Essa perspectiva induziu governos a darem vultosos subsídios para a indústria. Inclusive, governos de esquerda.
Nessas contas raramente se considera as externalidades – nome dado em economia para os impactos em terceiros de uma decisão ou adoção de um produto. A literatura do tema elenca 17 externalidades de carros. As maiores são acidentes, poluição, congestionamentos, crise climática.
Bem feitas as contas, os custos das externalidades superam em muito os ganhos econômicos da cadeia. Segundo dados do Ministério da Economia, a somatória de vendas de carros e autopeças no Brasil resultou em R$59 bi em 2015, e todos os tributos arrecadados totalizaram R$39 bi.
No entanto, somente os acidentes de trânsito geraram, naquele mesmo ano, um custo de 40 bilhões de reais em gastos hospitalares, perda de produtividade, perdas materiais e institucionais (sem contar as vidas perdidas, não monetizáveis), segundo estimativa do IPEA junto à PRF.
Analisando apenas poluição do ar, ruído e acidentes, um relatório feito pela ANTP, estima em R$154 bilhões os custos sociais desses três fatores gerados pelo transporte motorizado no país no ano de 2016. Cerca de R$ 138 bilhões (89,5%) são gerados por automóveis e motocicletas.
O automóvel é agente central da crise climática. Nos Estados Unidos, o setor de transportes é responsável por 29% das emissões que geram o aquecimento global – e 59% dessas emissões vêm dos automóveis. De modo que somente os carros nos EUA emitem mais do que todo o Brasil.
A lista de externalidades poderia seguir. Carros devoram espaço da cidade, congestionando as ruas, produzindo milhares de horas perdidas no trânsito, matando os espaços públicos. O tempo que o burguês ganhava com seu carro é ínfimo perto do que toda a sociedade perde hoje.
Os mais de cem anos de difusão do automóvel nos fizeram acreditar que essas máquinas que nasceram supérfluas são, mais do que necessárias, inevitáveis. Naturalizamos uma aberração e hoje não sabemos viver sem ela. Seguimos em uma inércia suicida.
Quem chegou até aqui talvez se interesse em saber que esse fio, apesar de enorme, é o resumo de alguns artigos publicados em anos recentes, na @piseagrama, na @quatrocincoum e na @revistapiaui

Alguns deles abaixo:
piseagrama.org/o-mundo-sem-ca…
Sobre como se deu a difusão dos automóveis nos Estados Unidos, o lobby automobilístico e os impactos na vida cotidiana e na democracia, este na 451.

quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/resenhas/la…
Sobre a relação da cultura automobilística com violência política, machismo e bolsonarismo, este na @revistapiaui

piaui.folha.uol.com.br/materia/jeitin…
Este artigo toca em um tema mais amplo, mas passa também sobre como o automóvel é pivô da crise climática e que não é possível fazer as adaptações urbanas necessárias para este momento sem rever a hegemonia do carro.

piaui.folha.uol.com.br/materia/a-dupl…

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