Talvez você já tenha visto, ouvido, lido ou reproduzido por aí a ideia de que "6.500 pessoas perderam a vida na construção de infraestrutura para a Copa no Catar" ou, pior, de que morreram "na construção dos estádios". Saiba então que essa 'informação' é totalmente enganosa
Há quatro anos, trabalho lidando com desinformação. Infelizmente, muitas vezes a fonte da desinformação é a própria imprensa profissional. E é deste caso que estamos falando. A fonte desta picaretagem é nada menos que o conceituado The Guardian
Em 23/2/2021, o Guardian publicou uma reportagem com um título sensacionalista: "Revelado: 6.500 trabalhadores migrantes morreram no Catar enquanto o país se prepara para a Copa". Dá pra ver no Wayback Machine, que armazena versões anteriores de links web.archive.org/web/2021022306…
Depois, o título mudou para o atual. Algo como "Revelado: 6.500 trabalhadores migrantes morreram no Catar desde que o país recebeu o direito de sediar a Copa." O jornal buscou ao menos demonstrar que se tratava de um número de mortes num espaço de 10 anos theguardian.com/global-develop…
Leitura da reportagem mostra que este número é o de imigrantes de 5 países (Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e Sri Lanka) que morreram no Catar entre 2010-2020. Na época, o número oficial de mortes ligadas à Copa era de 37, sendo que 34 eram 'não-relacionadas ao trabalho'
(A estatística oficial não serve exatamente para "aliviar" a situação, mas falarei sobre isso mais à frente, numa breve discussão sobre os severos problemas trabalhistas que existem no Catar.)
Dois pontos são muito problemáticos na reportagem. O primeiro é que o título faz uma conexão direta com a Copa, mas no texto essa conexão é bem mais frágil. "É provável que muitos trabalhadores que morreram tenham sido empregados nesses projetos de infraestrutura da Copa"
O segundo ponto é que essa estatística não é confrontada com taxas de mortalidade. O leitor fica sem saber se esse número é excessivo ou não. Esse é um ponto essencial da história, inclusive porque é o argumento de defesa de Doha. Mas a reportagem não investiga isso!
Ou seja, o jornal não sabe se a estatística é significativa ou não e também não tem certeza se há ligação entre as mortes e a Copa do Mundo (é 'provável' que haja, disse a fonte). Mas mesmo assim foi lá e publicou que 6,5 mil pessoas morreram por conta da Copa!
Aqui, o @marcowenjones, professor em Doha, mostra que o tweet original do Guardian se tornou o epicentro de uma rede desinformação em vários idiomas, composta inclusive por jornalistas, atestando que as 6,5 mil mortes estão conectadas à infraestrutura
De novo, a reportagem: "Embora os registros de óbitos não sejam categorizados por ocupação ou local de trabalho, é provável que muitos trabalhadores que morreram tenham sido empregados nesses projetos de infraestrutura da Copa." E não sabemos se número é anomalia ou não.
Essa desinformação sobre o Catar tem como origem a irresponsabilidade do Guardian, mas seu combustível é o orientalismo, basicamente uma lente que o Ocidente utiliza para observar o Oriente, que permite ver nos povos orientais apenas duas características: exotismo ou violência.
No dia 9, a presidente de uma ONG europeia escreveu que "6500 personas han perdido la vida en la construcción de infraestructuras en el desierto qatarí." Temos aqui a violência (mortes) e o exotismo (deserto) juntos. E a desinformação, claro blogs.publico.es/otrasmiradas/6…
Recentemente, surgiu outra estatística igualmente problemática. A de que 15 mil imigrantes morreram para que a Copa do Catar fosse realizada. Esse número virou febre na Alemanha. Torcidas têm protestado. Aqui, a ESPN aparentemente endossou o protesto
O número de 15 mil mortes é uma estatística oficial do governo do Catar, referente ao total de imigrantes que morreram no país entre 2010 e 2019, de todas as idades, em todas ocupações. Apareceu em agosto de 2021 neste relatório da Anistia Internacional amnesty.org/en/documents/m…
De novo o @marcowenjones. Este número de 15 mil mortes é baixo numa comparação com outras taxas de mortalidade, mas foi "sensacionalizado".
Nada disso serve para dizer que as condições de trabalho no Catar para os trabalhadores imigrantes são positivas. Não são, de forma alguma. Mas o debate precisa ser feito em cima de fatos e não de invenções, que infelizmente é o caso dessas estatísticas
Ponto paradoxal é que a Copa do Mundo e a pressão externa sobre o Catar tiveram, na prática, o positivo efeito de melhorar levemente as condições de trabalho no país. O sistema kafala, basicamente uma servidão modernizada, foi desmontado, e um salário mínimo foi instituído. MAS..
...o salário mínimo aprovado no Catar é ridiculamente baixo, na prática oficializando um abuso. No caso do sistema kafala, as mudanças aprovadas pela monarquia sofreram enorme resistência de atores cataris poderosos e vem sendo diluídas pouco a pouco.
Curiosamente, o mesmo Guardian publicou no mês passado uma discussão mostrando as nuances deste processo de 1) pressão externa sobre o Catar; 2) mudanças de cima para baixo; 3) resistência interna theguardian.com/global-develop…
A questão de saúde dos imigrantes também é grave. O relatório da Anistia (de onde as organizadas da Bundesliga tiraram as 15 mil mortes) foca justamente na falta de transparência do governo do Catar e, em especial, na falta de investigação sobre a causa das mortes dos imigrantes
A pirotecnia dos 6,5 mil ou 15 mil mortos é fácil de ser vendida e consumida. Infelizmente, o mesmo não ocorre na discussão mais densa sobre a situação dos trabalhadores imigrantes que, convenhamos, não envolve apenas o Catar, mas todo o mundo. Faremos essa discussão?
E, no caso específico do Catar, quem continuará exercendo pressão sobre o governo de Doha para realizar melhorias na situação após a final da Copa do Mundo, em 18 de dezembro?
Meu palpite é de que a situação será esquecida pela "comunidade internacional".
O Globo Esporte publicou hoje a seguinte 'informação':
"Estima-se que entre 15 e 18 mil trabalhadores morreram nas obras" da Copa do Mundo. (via @ProfEduCoutinho)
É impressionante como um absurdo desse tipo circula imaculado entre o jornalismo profissional.
Ótima apuração da Deutsche Welle. Mostra os inúmeros abusos que ocorrem no Catar e a falta de transparência do governo local ao mesmo tempo em que mostra que certas estatísticas são falsas ou enganosas. Insisto: as estatísticas obscurecem o real problema dw.com/en/fact-check-…
Se você chegou até aqui, talvez se interesse neste fio complementar:
Nos anos 1990, as principais lideranças palestinas e israelenses conseguiram travar acordos que encaminhavam uma solução para a disputa entre os dois lados: a criação de um Estado palestino contíguo a Israel, englobando a Faixa de Gaza e a Cisjordânia.
Yitzhak Rabin, o então primeiro-ministro de Israel, e Yasser Arafat, o principal líder palestino, fizeram um acordo que, apesar de suas muitas imperfeições, tinha o mérito de ser uma novidade pacífica em uma história de violência sistemática.
Mais que isso, ali Israel reconheceu a Autoridade Palestina como representante dos palestinos e a AP reconheceu a existência de Israel.
As Forças Armadas, @exercitooficial à frente, colocaram em curso uma campanha que tem o intuito de fazer o país esquecer seu papel na tentativa de golpe de estado realizada em 8/1. São dois objetivos: barrar punições à alta oficialidade e proteger os privilégios institucionais.
As evidências dessa operação estão colocadas no noticiário recente. A primeira está neste tweet de @reporterenato: juristas, advogados e integrantes da OAB cogitaram pedir prisão de generais, mas recuaram "após pressão de militares da ativa"
O tweet indica, portanto, que militares estão atuando nos bastidores para impedir que generais de alguma forma envolvidos na tentativa de golpe sejam investigados. A gravidade é enorme. Imaginem se integrantes de partido político ou de um movimento social estivessem fazendo isso
Ainda sobre as estatísticas de mortes de imigrantes no Catar relacionadas à Copa do Mundo, faço aqui alguns apontamentos sobre comentários e acusações que recebi por conta deste fio publicado no dia 12 de novembro
(Vou fechar o fio para respostas para tentar diminuir o ruído que elas geram, mas encorajo os eventualmente interessados a me marcarem para que o debate transcorra)
É importante reforçar de que se trata o fio do dia 12: da mera tentativa de mostrar que, com as informações disponíveis hoje, é falso dizer que a Copa do Mundo no Catar matou 6,5 mil pessoas ou 15 mil pessoas. Não há base para fazer tal afirmação.
Fio com algumas considerações a respeito da atuação dos Estados Unidos na Ucrânia no que diz respeito a laboratórios biológicos. Importante: muitas das informações que vão aparecer aqui são oficiais dos EUA. Não sei e não tenho como saber a totalidade das ações norte-americanas
1. A acusação do governo da Rússia contra os Estados Unidos é centrada na atuação da Defense Threat Reduction Agency (daqui para frente, DTRA), algo como Agência de Redução de Ameaças de Defesa. Aqui, o vídeo da acusação, com legendas em espanhol
2. A DTRA lidera o Programa Cooperativo de Redução de Ameaças (CTR na sigla em inglês), criado no fim da Guerra Fria, com o objetivo alegado d garantir a segurança de armas de destruição em massa. A divisão biológica do CTR é o Programa Cooperativo de Engajamento Biológico (CBEP)
Anatomia da desinformação. Esse fio tem um intuito de alertar as pessoas a respeito da forma como elas consomem conteúdo no Twitter. Peço aos citados que não entendam a eventual menção aqui como um ataque e sim como um alerta.
1. Em 7/mar, o regime russo denunciou a existência de uma rede de 30 "biolaboratórios" na Ucrânia com conexão com o Departamento de Defesa dos EUA. O que teria sido encontrado ali indicaria a realização de "experimentos em programas biológicos militares" tass.com/world/1418311
2. O material, porém, era uma indicação disso, não era prova, como admitiu o próprio oficial russo responsável pelo informe. As evidências teriam sido destruídas por americanos e ucranianso. "Seria possível provar", "ficaria claro". Estamos no condicional aqui, portanto
Ontem, uma maternidade foi bombardeada em Mariupol. As fotos de @EMaloletka, da AP, e o vídeo da Sky News mostram as consequências do ataque. Governo ucraniano acusa a Rússia, cuja posição oficial é negar que esteja atacando alvos civis
Em tempos de guerra, confirmar a autoria de um ataque não é uma tarefa simples. Talvez o bombardeio contra a maternidade de Mariupol nunca seja alvo de uma investigação completa e conclusiva. Mas não se pode fechar os olhos para o histórico de crimes de guerra do Kremlin de Putin
A rede de desinformação do regime russo sustenta que os ucranianos estão bombardeando suas próprias áreas civis para incriminar Moscou. Mas toda grande operação militar russa envolve ataques a hospitais. Foi assim na Chechênia, na Crimeia e é assim na Síria.