A Fórmula 1 é uma categoria de risco: quanto a isso, não há dúvidas.
Mas uma vez eu li que mesmo um esporte como o automobilismo deixa frestas para que a humanidade dos pilotos se seja vista por trás dos capacetes.
Essa história é um exemplo perfeito disso. Deixa eu te contar.
📌 França, 1960s
Érik Comas entra pro clube dos pilotos que cresceram entre pneus, chaves de fenda e manchas de graxa, mas sem qualquer intenção de virar piloto.
Seu pai tinha uma oficina pequenininha lá na comuna francesa de Romans, com um ou outro funcionário.
Um dos clientes mais frequentes era Charles Jourdan, um famoso designer de sapatos que colecionava carros esportivos.
Um dia, Charles levou uma Alpine para trocar o carburador. E a Porsche. E a Ferrari. E o olhinho de Érik quase saltava das órbitas a cada carro que chegava.
Agora, some a esses carros - que, a certo ponto, correspondiam a 80% do faturamento anual da oficina - um funcionário do pai que era piloto de go-kart nas horas vagas, e que adorava contar história de corrida ao filho do patrão.
Pronto, agora sim: temos um mini piloto.
Quando o tal funcionário levou um Érik de 13 anos para experimentar a sensação de correr, foi um caminho sem volta. “Foi uma epifania”, como ele descreveu.
Mas o pai não curtiu. Disse que se ele quisesse andar por aí, tudo certo, mas competir, se arriscar? Jamais. Era perigoso.
“Tentei explicar que não tinha sentido, mas não teve jeito. Tive que esperar até os 18 anos”
E quando começou, não parou. Teve uma passagem rápida pelo kart antes de comprar um Renault 5 de um tal de Jean Alesi, em 1982, e em nove anos conquistou a tão sonhada vaga na Fórmula 1.
A chance veio logo depois de vencer a F-3000 de 1990, e entre todos os 36 da elite, só um piloto um foi falar com Érik.
“O Senna foi o primeiro e único piloto da Fórmula 1 a me felicitar. Ele disse: ‘Seja bem vindo. Parabéns pelo campeonato’. Aquilo pra mim foi algo especial.”
Imagina como foi, né? Apesar de terem uma idade aproximada (Érik com 27 anos, Ayrton com 30), Senna já era bicampeão.
E assim, com o pé direito, Érik Comas chegou à Fórmula 1 - só que no ano seguinte o medo do pai se tornou mais palpável do que qualquer um gostaria.
📌 Spa-Francorchamps, 1992
Nos treinos livres, Érik dava uma volta rápida com sua Ligier quando perdeu o controle na curva Blanchimont.
O impacto contra o muro foi tão forte que, devolvido para a pista em uma nuvem de fumaça, Comas ficou inconsciente.
E acredite: não era o maior problema. Desacordado, o piloto francês deixou o pé no acelerador, ensopando o próprio carro - e a si mesmo - de combustível.
Por sorte, um brasileiro que tinha fama de ser exageradamente atento aos detalhes vinha em volta rápida logo atrás dele.
Ao perceber que a cabeça de Comas estava tombada para a frente, Ayrton Senna imediatamente saltou de sua McLaren para ir socorrê-lo.
E, Deus, ainda bem que o fez.
Como o carro estava ligado e banhado em gasolina, uma provável explosão teria ocasionado uma tragédia fatal.
Aquilo provavelmente seria o fim de Érik, o garoto apaixonado pelos carros da oficina do pai que tanto lhe pediu para não se arriscar naquele meio.
Mas não foi. Senna desligou o motor e, mesmo com todo o risco, não arredou o pé do lado de Comas até que o carro médico chegasse.
Sid Watkins (o médico da Fórmula 1) comentou que Ayrton estava dando suporte à cabeça de Comas do jeito mais correto possível. Quando ele chegou, o brasileiro ergueu o olhar e lhe disse:
- Tentei fazer do mesmo jeito que você faz com a gente, professor.
🥹
Apesar de ter saído desacordado, Érik voltou já na etapa seguinte sem nenhuma sequela. Enchia o sorriso para contar ao mundo que Ayrton Senna havia salvo sua vida.
Que o primeiro e único a lhe dar as boas vindas à Fórmula 1 foi, também, o primeiro e único a se arriscar por ele.
“Ayrton era tão generoso que para ele foi um ato normal ter me salvado”, contou ao UOL. “Mas, para mim, ele é um herói”.
Mas infelizmente a vida não é uma volta perfeita. O destino adora aparecer com uma bandeira vermelha e uma piada de mal gosto - e foi o que aconteceu em 1994.
📌 Ímola, 1994
A largada de Comas foi conturbada. Teve um toque e aproveitou o Safety Car causado por alguma batida para passar rapidamente pelo pit stop.
Por falha de comunicação da [pavorosa] organização de prova, Érik voltou à pista antes de saber da bandeira vermelha.
Ele teve que frear para não bater em um helicóptero que havia pousado na pista e, assim que viu o azul e branco da Williams despedaçada, teve certeza de quem era.
Seu primeiro pensamento foi: “preciso retribuir o favor”, e ele tentou sair em direção ao carro de Ayrton.
Mas os fiscais o impediram. Os médicos já estavam atuando, Sid Watkins já estava ajoelhado ao lado do carro. Não tinha o que fazer. Só sentar, assistir e torcer.
“Eu senti uma radiação enorme. Eu senti que ali, vendo aquela cena, eu estava vendo Ayrton indo para o céu”.
Assim que o helicóptero decolou, colocaram Érik Comas dentro do Safety Car para retornar aos boxes. Ao seu lado, no banco de trás do carro, estava o que um dia tinha sido o inconfundível capacete amarelo, verde e azul.
Foi quando ele teve certeza.
Ayrton Senna tinha morrido.
todos relargaram - menos Érik. Dentre todos os presentes, ele era um dos únicos que havia visto o estrago com os próprios olhos. Que sabia da gravidade.
Para ele, aquela corrida não tinha mais sentido. Na verdade, nada na Fórmula 1 fazia. O brilho no olho já tinha sumido.
📌 A Vida Pós-Ímola
Érik Comas quis abandonar a Fórmula 1 no instante em que pisou no avião para fora da Itália, mas a Larousse - sua equipe - o convenceu a terminar o ano.
Só para cumprir contrato, finalizou a temporada de 1994 e nunca mais voltou à F1.
Até hoje, em suas entrevistas sobre Senna, Érik se enche de culpa.
Ayrton chegou antes dos médicos. Ele não.
Ayrton conseguiu ajudá-lo. Ele não.
Ayrton morreu. Ele não.
Essa é a quinta e penúltima thread de um especial dos 30 anos sem o Ayrton que vai rolar até 01.05 - e a ideia não é lembrar da morte, mas da vida e das pessoas com quem ele conviveu.
Se você quiser ajudar na produção desse conteúdo com qualquer quantia:
Dentro das pistas, o melhor amigo de Ayrton Senna, a thread 🧶
Imagina ter o privilégio de dizer que, mais do que um companheiro de equipe, você foi o melhor amigo de uma lenda. Que, ao se lembrar dele, você o vê sorrindo com roupas comuns.
Nosso protagonista de hoje pode falar tudo isso com tranquilidade. Deixa eu te contar sobre ele.
📌 Caminhos paralelos
Um filho de empresário que não tá muito afim de seguir o mesmo rumo do pai, então resolve tentar a vida nas corridas.
Com um ajuste aqui e outro ali, as histórias de Senna e Berger poderiam partir do mesmo parágrafo sem qualquer prejuízo de sentido.
O mais ilustre ídolo e fã de Ayrton Senna, a thread 🧶
Gosto muito da ideia de que nossos ídolos, por maiores que sejam, também têm suas próprias inspirações. Que, no fundo, são só crianças que fizeram algo extraordinário.
E como todo garoto, Ayrton Senna também tinha seus heróis. Deixa eu te contar sobre um dos maiores.
📌 Esporte europeu, mas…
Por absurdos 45 anos, foi um nome latino-americano que segurou o recorde de maior campeão da Fórmula 1: nosso mais do que querido Juan Manuel Fangio.
O pentacampeão argentino, portanto, servia (e ainda serve) de exemplo pra muito piloto.
A mulher brilhante ao lado de Ayrton Senna, a thread 🧶
O ano era 1990, e as equipes tinham assessores de imprensa responsáveis pelas duplas de pilotos. Não existia isso de um assessor pessoal, que acompanha um único atleta pra todo canto.
Até Ayrton Senna resolver que precisava de um, ou melhor, de uma. Deixa eu te contar sobre ela.
📌 Maria Beatris Assumpção. Ou melhor, Betise.
Ela escrevia para o Estadão, cobrindo as categorias de base de diversos esportes. Entrevistou Ayrton algumas vezes nessa época, conheceu a família dele e tudo.
E acredite, Fórmula 1 não era a praia dela. Achava uma categoria chata.
Cemitério de motores: a lenda do lago do Autódromo de Interlagos, a thread 🧶
Sabia que aquele lago de Interlagos é lendário no mundo do automobilismo? Tem aquele tipo de história que ninguém confessa, que desviam de assunto…
Pois é, deixa eu te contar.
Essa é a última thread de um especial Interlagos que eu amei escrever, então fav e RT são bem-vindos!
✨ Glossário: Endurance
É como uma prova de resistência do automob, dura até 24h, mas já existiram algumas de 80h. Por hora, basta entender que a maioria tem uma fase noturna.
Desde 2012 tem até um campeonato mundial, o WEC - que volta pra Interlagos em 2024.