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Em momentos de crise econômica ou política, o recurso a argumentos pseudocientíficos ganha intensidade como apologia do capitalismo, visando a manutenção do status quo. Isso não é uma prática nova, mas um projeto bem definido que o marxismo denominou de Decadência Ideológica.
O termo é utilizado por diversos marxistas, diretamente ou não, para se referir a uma mudança de posição da classe em meados do século XIX, tendo início quando a burguesia passa a dominar o poder político.
Historicamente, localizamos isso em 1848, mas que vem de um período de insurreições e revoltas que seguiram o fim do período napoleônico.
E não foi somente em um país, mas em praticamente toda a Europa. A chamada Primavera dos Povos foi um período que resultou na independência de diversos países (Grécia, Bélgica), tentativas de unificação nacional (Alemanha, Itália) e de derrubada do absolutismo (França, Áustria)
1848 foi talvez o ano mais marcante, por diversas razões. A principal foi a solidificação do poder político. Isso porque até então os moderados e os radicais tinham um inimigo em comum (a monarquia absolutista), mas objetivos bastante diversos. 1848 muda isso.
Com a derrubada de Louis Philippe e a instauração da Segunda República na França, os moderados (burgueses) atingiram seu objetivo: estabelecimento de uma constituição e ampliação da participação política, mas os radicais não estavam satisfeitos.
Com essa ampliação, a burguesia como um todo (e não só a alta burguesia, como os banqueiros) ganhou um poder político que suplantou a monarquia na França, diminuindo também sua influência no resto da Europa. O tempo das monarquias estava chegando ao fim.
Não é a toa que em 1848, dois dias antes do vulcão entrar em erupção, Marx e Engels publicavam o Manifesto do Partido Comunista, que com grande percepção anunciava a consolidação das duas classes que estariam em conflito.
É neste cenário que se instala a decadência ideológica. A classe que até este momento tinha pretensões progressistas, ao conquistar o poder político, passa a aliar-se ao reacionarismo. Seu objetivo era a ampliação política da própria classe, nunca uma emancipação universal.
Essa mudança política tem evidentes consequências sobre a produção ideológica e científica como um todo. Seja no campo histórico, econômico, social, etc. Como apontava Marx no prefácio ao Capital:
Um bom exemplo é o de François Guizot (1787-1874), historiador e primeiro-ministro da França durante o reinado de Louis Philippe. Oposição liberal e grande estudioso da luta de classes, após 1848 Guizot defendia que a monarquia era um "imperativo da razão histórica"
Isto não é um fenômeno que ficou no século XIX. Até hoje é bastante comum a perda do caráter histórico das revoluções. A decadência ideológica torna necessário produzir uma pseudo-história que revisa o passado e anula o futuro (lembrem o "fim da história" do Fukuyama)
Os teóricos da burguesia evitam cada vez mais entrar em contato direto com a realidade, recorrendo a misticismos. No geral, essa decadência se manifesta de duas formas: como apologia vulgar ou como crítica romântica.
A primeira forma é perceptível, por ex., na vulgarização da economia, que cada vez mais se limitava à reprodução dos fenômenos superficiais. A ciência econômica passa a ter uma função doutrinária:
A segunda forma é mais complicada e perigosa, pois é esta linha de pensamento que desponta no irracionalismo. É aqui que surge a nostalgia reacionária, que busca no passado a solução da barbárie da civilização, assim como a crítica subjetivista e intimista como reação ao capital.
A decadência ideológica, portanto, se manifesta em dois extremos. De um lado, através da fuga ao "espírito científico objetivo", manifestado no pragmatismo, no positivismo, na redução da ciência aos seus aspectos quantitativos e estatísticos.
Por outro lado, essa decadência recorre aos ornamentos românticos e à fraseologia. à estetização da política, ao irracionalismo, às teorias fenomenológicas, ao subjetivismo e às teorias da pós-verdade.
É importante ressaltar que esses dois extremos não são excludentes, mas complementares. O racionalismo formal da objetividade científica define o que é ciência e se isenta de atuar naquilo que considera "de fora" do campo da ciência.
E isso que se encontra "de fora" da "ciência objetiva" é preenchido pelas formas ideológicas subjetivistas e irracionais. É aí que entra o ecletismo tão criticado por Lukács e por marxistas, mas tão útil para os adeptos destas teorias (alô pós-modernos).
Também não significa que a linha que separa o racionalismo formal do irracionalismo é rígida e constante, que esses dois campos estejam completamente intocáveis um pelo outro. É por isso que não são campos excludentes, mas complementares.
A dinâmica da decadência ideológica só é possível por causa de um aspecto da sociedade que é intensificado com o desenvolvimento do capitalismo: a divisão do trabalho. Apesar de presente em todas as sociedades, essa divisão ganha um aspecto novo com o avanço do capital.
Importante pra nós aqui é como essa divisão se aplica no campo ideológico e científico. Pois aqui são criados diversos campos e especializações que não dialogam entre si. Para Lukács:
Os exemplos mais óbvios são os da ciência social. A sociologia surge como ciência neste período, buscando estudar as leis e a história do desenvolvimento social afastadas da economia. A econômica passa a ser estudada isolada do desenvolvimento social, etc., etc.
Não é a toa que neste período surgem as primeiras teorias do darwinismo social. Se a história e a econômica não mais complementam a sociologia, o que justifica a organização social? Alguns, como H. Spencer, decidiram aplicar as leis da evolução à totalidade da vida humana.
O que é curioso, considerando que Marx e Engels eram grandes admiradores da obra de Darwin. Segundo Marx, a obra de Darwin fornecia "a base histórico-natural" da sua concepção de história humana.
Isoladas umas das outras, as ciências passam a ter esse caráter utilitarista. E em um sentido reacionário, passam a ser usadas como instrumento para justificar e eternizar as relações sociais capitalistas.
Isso porque toda produção científica passa por um "filtro reacionário" que a deforma. Esse filtro impede que as descobertas científicas ultrapassem os limites impostos pela organização do capital. Da mesma forma, esse limite força a criação de relativismos como do N. Tyson:
Outro exemplo claro (e recente) é o de James Watson. Seu reacionarismo e racismo deixa óbvio que a ciência possui um filtro ideológico e que uma descoberta científica real (o DNA) pode ser usada de forma reacionária (justificação da desigualdade racial).
Entretanto, temos que tomar cuidado para não cair no jogo retórico dos reacionários. Lukács já deixava claro esse funcionamento em 1938:
Isso lembra alguém nos tempos recentes?
É importante entender que entrar na retórica é jogar no terreno deles. Debater ideias com essas figuras públicas apostando na força das análises científicas é esquecer que não estamos lidando com ignorantes, mas com reacionários que tem um projeto político definido
É claro que o irracionalismo tem se mostrado um dos maiores perigos atualmente, principalmente nas suas manifestações obscurantistas e anticientíficas, e é importante combater esse projeto com um projeto de oposição (no caso, comunista).
Isso significa não só desconstruir esse reacionarismo e misticismo ideológico, mas também se apropriar e divulgar uma teoria com uma proposta de transformação, que tem uma fundamentação científica e objetiva de como organizar a sociedade de forma mais livre e humanizada.
Entender que esta não é uma luta no campo das ideias. A defesa de um projeto socialista não é somente sobre refutar teorias obscurantistas e reacionárias, mas de entender como esse projeto deve orientar uma prática revolucionária, e é esse projeto que devemos conseguir expandir
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