Thread by @dimasgibi

Um dos temas mais comuns em diversas mitologias é a razão por trás da troca das estações. As Crônicas de Gelo e Fogo (que inspiram Game of Thrones), em linhas gerais, são uma história desse tipo, criada do zero e para um mundo fictício. Acompanha a thread.

Os gregos acreditavam que a mudança das estações ocorria por causa da tristeza de Deméter, deusa da agricultura e das colheitas, por saudades da filha, Perséfone (que inclusive é a mulher representada na constelação de Virgem).

Durante um dos passeios de Deméter pela Terra com sua filha, a menina se impressionou com a beleza de algumas flores e foi colhê-las, acabando sequestrada por Hades, o deus da morte e do submundo. Hades fez de Perséfone sua rainha.

Porém, ao se ver longe da filha que tanto amava, Deméter se pôs a chorar e se recusava a sair do Olimpo. Com sua tristeza, os campos minguaram e nada foi colhido na Terra. Isso preocupou Zeus, que preocupado pela humanidade, foi cobrar Hades por ter sequestrado a menina.

Acontece que Perséfone havia comido sementes de Romã do submundo e bem gostava da vida de Rainha do Inferno, embora tivesse saudades da mãe. Assim, foi traçado um acordo: ela passaria metade do ano com Hades e metade com Deméter.

E assim surgem as estações no mito grego: enquanto Deméter está no inferno, a tristeza de sua mãe congela os campos e aumenta as noites: é o inverno. Quando Perséfone volta, porém, sua alegria traz a fertilidade e o calor de volta aos campos.

Não por acaso, dizia-se que o chão florescia por onde Perséfone pisava. É porque assim que ela deixava o submundo, começava a Primavera.

Mas o tema não é exclusividade dos gregos. A mitologia Shinto, no Japão, tinha um mito bem parecido. Amaterasu era a filha do deus supremo e portanto responsável por conduzir o sol, a luz, o calor e a fertilidade aos campos. O que despertava o ciúme do irmão Susanoo.

Por ser o deus das tempestades, Susanoo não era lá muito popular quanto a irmã, nem recebia tanta deovção quanto ela. Por isso, ele teve um ataque de fúria e matou vários cavalos, sagrados para Amaterasu, esfolou-os e jogou as peles nela.

Amaterasu, horrorizada, se trancou numa caverna, condenando o mundo a uma noite sem fim. Ninguém "puxava" o sol, afinal. Preocupada, a deusa Uzume, do riso e da folia, pendurou um colar numa árvore perto da caverna e rasgou as próprias roupas, causando gargalhadas divinas.

Quando Amaterasu saiu para espiar o que estava acontecendo, acabou desitraída pelo colar. Foi quando fecharam a caverna, impedindo que ela voltasse. O sol voltou a brilhar e tudo correu bem. Mas eventualmente, Susanoo ainda tem ataques de fúria e o processo se repete.

Além de explicar as estações, para alguns japoneses essa lenda também explica o dia e a noite. Os chineses tem lenda parecida: Zhulong, um dragão que vive numa montanha. Ao abrir os olhos, faz-se dia e calor. Quando ele os fecha, frio e escuridão.

Quando R. R. Martin conta a história de um inverno que é trazido por criaturas, ele está inventando mais uma dessas lendas. E o faz de forma extremamente poética.

Em primeiro lugar, porque o processo, ao contrário do nosso, que é anual, dura ERAS. Old Nan contava histórias do último inverno, que era ancestral. E a geração atual desconhece seus perigos e ameaças, pois são todos "summer born".

E é por isso que a espiral, desde o começo, mas especialmente agora, é tão importante. Mais do que aquele bando de personagens, a história é sobre ciclos que se repetem e se sobrepõe. Como uma espiral. Símbolo dos White Walkers.

Mas são também processos que estão sujeitos à intervenção de seres conscientes, como nas mitologias que falei antes. O Gelo e o Fogo das crônicas tem vontade, pensamento, amam, odeiam. Exatamente como Deméter, Zeus, Uzume ou Zhulong.

Os Filhos da Floresta, criaram os Caminhantes Brancos para que fossem uma arma contra os Primeiros Homens, que devassavam suas florestas e sua mágica (aquecimento global, anyone?)...

Porém, ao fazerem isso, condenaram não apenas aqueles primeiros homens, mas a si mesmos, a uma grande ameaça: o inverno trazido por eles. O jeito encontrado? Construir a muralha. Porém, de tempos em tempos, ela acaba não servindo pra segurar o inverno "do lado de lá".

Aí é inverno. Que não "passa sozinho". Ele precisa ser combatido. Precisa ser mandado de volta pra trás da muralha. E isso é feito com "fogo". Simbólico e literal. PESSOAS precisam se unir para expulsar o inverno.

E é por isso que nunca achei que Jonerys era apenas fan service. A grande sacada dessa porra toda é dizer que o amor dos dois é algo tão grande que dele depende a troca de estações. E vice-versa. É mais épica das histórias de amor.

E tem mais... O verão não vai reinar pra sempre depois dessa história. Alguma sementinha vai ficar. Algum White walker vai fugir. Algum bebê será oferecido à noite. E em algumas eras, cumprindo a espiral, o inverno volta.

Volta para lembrar os viventes de sua efemeridade. Volta para "limpar o caminho" para uma nova primavera. Volta para que floresçam novos amores. Mas sobretudo volta porque as estações, como as histórias, são infinitas.

E é por isso que eu sempre amei "As crônicas de gelo e fogo" mesmo que o nome mais comum seja "Game of Thrones". É mitologia sendo feita na nossa cara, mores. Só queria dizer isso, mesmo.