Thread by @Homer_Fla

Meus amigos, vou abrir uma exceção no hiatus que venho tirando dessa rede social pra abrir uma thread sobre a Importância do Mundial, já que vi alguma discussão em torno disso

Eu sei que é incomum compartilhar algumas experiências pessoais depois de um tempo sem tweetar com frequência, mas eu não enxerguei outra maneira de fazer isso. No mais, nessa thread eu vou falar de sociologia, marketing, formação de marcas e outras coisas que não entendo.

Então perdoem qualquer besteira que eu falar ou ignorem a thread. Após ela, volta para meu hiatus pelo menos até o início da próxima temporada.

A primeira coisa na Importância do Mundial, pra mim, é a Importância esportiva. É o maior torneio de clubes do mundo por definição. O campeão é o melhor time do planeta no ano.

"Ah, mas é injusto decidir isso com um jogo. Se colocar times Europeus pra jogarem 10x com times Brasileiros, os Europeus vão ganhar 9, os times deles são melhores"

A justiça não implica necessariamente que o time que ganhe mais vezes seja o melhor (+)

Até porque o futebol é um esporte muito complexo, é impossível decidir universalmente o que é o melhor. A gente geralmente assume [com razão] que o melhor é o que vence mais, mas as vezes as próprias vitórias não traduzem os jogos.

Por isso servem os campeonatos, os campeonatos são a forma de decidirmos qual é o melhor time de acordo com os critérios que adotamos. Até porque esses critérios são relativamente arbitrários. Por exemplo, antes, as vitórias valiam 2 pontos, hoje valem 3.

Ou seja, antes, num campeonato onde o time A fizesse 15V,10E e 5D e o time B fizesse 17V, 5E e 8D, o time A era o melhor. No critério de hoje, o time B seria o melhor. Não existe justiça absoluta, existe decidir o melhor nos critérios combinados previamente.

E se o Mundial é injusto porque o "melhor" pode perder em uma única partida ruim, o mesmo pode ser dito da Libertadores, da Liga dos Campeões ou de qualquer outra competição. Você pode não gostar da ideia de um time do Brasil ser tido como melhor que uma seleção de craques (+)

Mas é exatamente isso que torna o torneio justo, é essa impessoalidade. O Mundial estabelece um critério pra ser o melhor. Não importa quem ganhe, atendendo você é a rigor o melhor. Se fosse julgar por ter melhores jogadores, não precisaria nem jogar, definia fazendo um "raio-x".

"Ah, mas os Europeus não ligam pro Mundial, só os Sul-Americanos se importam"

Nisso, existem dois pontos. O primeiro é que essa afirmativa simplesmente não é verdadeira. Morei tanto na Inglaterra quanto na Alemanha e os torcedores assistiam e queriam vencer o mundial

Assim como queriam vencer qualquer competição. Inclusive, mandavam times principais, como o Liverpool mandou dessa vez. Não gostavam quando perdiam, como nós não gostamos. Inclusive, vi o BvB ganhar um Mundial (Weltpokal) contra o time de aluguel do Cruzeiro em 97.

Os torcedores do BvB assistiram e comentaram sobre o jogo. Agora talvez o mundial não seja uma obsessão pra eles, o que cria três outros pontos: o primeiro é que é razoável tratar o Mundial como um plus, não como uma obrigação. É o ápice de um time, mas ganhar o continente já é+

suficientemente difícil e significativo. Nisso, pra mim, eles acertam. O segundo é que eles tem uma postura Eurocêntrica. Eles tratam a Europa como o Mundo, então pra eles o Campeão da Europa é o melhor. Não vou emitir juízo de valor, nós fazemos a mesma coisa aqui nos EUA (+)

O campeão da MLB venceu a WORLD SERIES , mesmo que não tenha jogado contra ninguém do resto do mundo. É uma forma de ver a coisa. No mais, essa postura é extremamente conveniente pra eles. Retira qualquer pressão e justifica qualquer derrota. O que leva ao terceiro ponto, que é +

que não precisamos aderir à esse pensamento. Até porque essa ideia de que o time que ganhou a UCL já é o melhor e não precisa se provar mais, além de conveniente, talvez seja válida pra agora, onde o monopólio do futebol é quase Europeu, mas não sabemos se será válida no futuro.

Se em 1981, quando o Flamengo ganhou do Liverpool, me falassem que em 2019 os times Europeus teriam ampla vantagem sobre os da América do Sul eu duvidaria. Não parecia provável e nem natural. Aconteceu. Hoje, eles estão na ponta, mas o futebol muda rápido e daqui há 20 anos

os times da América do Sul podem ter alcançado novamente ou podem surgir supertimes na Ásia competitivo, onde existe um mercado enorme, e esse monopólio pode não existir mais. A melhor forma de se prevenir desse cenário é guardar a taça no armário.

Da mesma forma, em critério de importância, se hoje pra eles não parece tão importante porque é uma taça que "não prova nada a mais", no futuro, com a existência de outros super-times no exterior, a importância pode aumentar consideravelmente.

Por fim, ainda em termos esportivos, acho importante ganhar o Mundial no novo formato porque no Brasil, desde a canalhice dos títulos de Fax começou, vem existindo um movimento abjeto de revisionismo histórico, com torcedores tentando redefinir o significado e o valor dos títulos

Primeiro reconheceram uma série de campeonatos insignificantes como títulos, os torcedores, sem conquistas no presente, ignoraram a coerência dos próprios clubes, que não consideravam isso títulos nacionais, e começaram a contar como Brasileirão.

Isso já começou a vazar pra escala internacional. É time inventando (e tentando canetada) título de "Libertadores", é time tentando desmerecer o mundial antigo e contar só o Mundial novo e assim por diante. O título no formato novo nos blinda dessa retórica cretina.

Agora, vejo uma outra importância, difícil de mensurar, em aspecto de consolidação da marca e expansão global. Se alguém do marketing tiver uma explicação técnica pra isso eu exponho aqui com prazer, mas por enquanto vou relatar o fenômeno baseado em observações pessoais.

Eu me mudei de volta pra Boston há quase 5 anos. Eu tenho três filhos e a diferença de idade do meu filho mais velho pra minha filha mais nova é razoável. Enquanto o mais velho faz High School, a mais nova ainda está na Elementary School. Isso causou um fenômeno interessante (+)

em termos de paternidade, já que apesar de terem os mesmos pais, a criação dos dois foi muito diferente, já que meu filho mais velho teve boa parte da infância do Brasil, chegando a ir a escola, enquanto minha família mais nova praticamente foi criada por aqui.

E essa experiência nova me deu um insight perceptível de quanto as coisas mudaram. Comparando, a criação do meu filho foi muito mais parecida com a minha do que com a da irmã dele, mesmo a diferença de idade entre eles sendo 4x menor do que entre eu e ele.

Hoje, com a tecnologia, as crianças consomem muito mais informação por conta própria. Por isso, elas também formam muito mais a opinião por conta própria - ou influenciada por outras pessoas, já que agora elas tem acesso à muito mais opiniões.

Ao perceberem isso, surgiu um segmento novo, com várias novas técnicas, feito pra que conseguissem endereçar mensagens pra crianças. Os influenciadores não são populares por acaso, eles são populares porque sabem se comunicar com as crianças.

Da mesma forma, eu percebi que os jogos também mudaram e incorporaram técnicas novas. Os jogos que meu filho jogava no iPad são diferentes dos jogos que minha filha joga hoje. Uma das diferenças que eu notei é que nos jogos de hoje, parece ser muito mais importante (+)

que as crianças tenham uma sensação de progresso contínuo e, acima de todo, um sentimento de recompensa, de que elas estão ficando cada vez melhores. Antes, em jogos com dinheiro interno, as crianças tinham 100 ou 10 mil coins no jogo. Hoje, elas tem 100 bilhões ou 1 trilhão.

Isso intensifica esse sentimento, a criança prefere jogar um jogo onde ela tenha 10M do que um onde ela tem 10k porque ela simplesmente acha que, como 10M é maior do que 10k, ela é melhor no jogo em que ela tem 10M do que no que ela tem 10k, mesmo que não seja verdade

Da mesma forma, os itens cosméticos em jogo, por exemplo, funcionam praticamente por Efeito Veblen. Elas querem as melhores skins por serem as melhores. Passa a ser desejado por ser raro.

Considerando um mundo com pais com cada vez menos controle sobre as opiniões das crianças e as mecânicas descritas, me parece claro que vencer o Mundial, aliado à uma estratégia efetiva de comunicação, poderia ter um impacto enorme sobre a escolha de time das gerações futuras.

Você cria essa sensação de progresso contínua: primeiro você ganha o Carioca, depois o Brasileiro, depois a Libertadores, depois o Mundial. Você passa a ter o item desejado, o maior troféu, o que ninguém mais no mundo tem.

Você passa a ter um argumento irrefutável: "Por quê o Flamengo é o melhor time do Mundo? O Liverpool tá no FIFA e tem os melhores jogadores" => Simples, porque eles jogaram pra ver quem era o melhor, o melhor da América x o melhor da Europa. O Flamengo foi lá e ganhou.

Isso não é um fenômeno local, não é uma coisa daqui de Boston. Vem sendo assim no mundo todo. Essa taça abre espaço pra uma narrativa coesa, poderosa, capaz de atrair torcedores no mundo inteiro. Lembrem-se que nós escolhemos nosso time enquanto crianças.

Com esse tipo de narrativa e ações de expansão de marca pro público jovem (presença nos video-games, jogos elétricos, ações de ativação, produtos pra crianças, facilidade de acesso aos jogos no exterior), o Flamengo dá um passo na direção de virar um super-time global.

Tem muito trabalho pra ser feito e definitivamente não vai ser esse título que vai decidir o futuro do clube, mas definitivamente é algo que ajuda e que se bem trabalhado pode possibilitar uma expansão do Flamengo pra fora do Brasil.

Até porque em um cenário ideal, financeiramente saneado, com sucesso esportivo e condição de trazer jogadores de dimensão mundial, o que vai sobrar vai ser entrar nessa guerra com os gigantes pelos corações ainda "vazios" espalhados pelo mundo.

O projeto do Flamengo TEM de ser preencher esse vazio. Qualquer país que não tiver potencial pra um super-time local tem de ser nosso alvo. Líbano, Peru, Angola, Bolívia, Moçambique, Suriname, Cabo Verde e etc. É um Flamengo que tem de trabalhar pra ser a alternativa aos Europeus

Se o Mundial ajuda nisso, e pra mim ele definitivamente ajuda, nós definitivamente precisamos dar a vida por esse Mundial. Até porque o Mundial não é só o maior símbolo de sucesso, excelência esportiva. É também um marco em termo de cultura de clube.

O Mundial não foi só um marco esportivo. Foi o começo de uma cultura vencedora, de uma torcida sedenta por títulos, que viu e aprendeu como as vitórias são feitas. Ajudou a definir a Identidade do Clube.

Nós tivemos 17 anos horríveis, sem conseguir vencer o Campeonato Brasileiro, lutando vários anos pra não cair, falidos financeiramente, vários rivais ganhando títulos nesse meio período. E nesse meio tempo, não só a torcida não abandonou o time, mas continuou crescendo.

O Mundial criou uma identidade tão grande que foi capaz de criar uma nova geração de rubro-negros mesmo no ápice das vacas magras. O Flamengo não perdeu torcida jovem e não caiu. Quase todos os outros times, nas piores fases, caíram e víram a torcida encolher entre os jovens.

Uma grande conquista do Flamengo em termo institucional, pra mim, foi o que eu chamava de Fla-Teen, que hoje não é mais teen, àqueles que eram adolescentes e tiveram 2009 como primeiro título brasileiro. Torcida que cresceu na pior época da história do clube.

Essa é a mesma torcida que, sem ganhar nada, reverenciava os ídolos do passado que não viram jogar, cravava que time grande não caia, ia no estádio apoiar e dizia que dias melhores iam chegar, mesmo sem nunca ter visto dias melhores. (+)

A mesma torcida que nunca tinha visto deixar chegar, mas vivia dizendo que se deixasse chegar não ia ter pra ninguém e que, no dia que deixaram chegar, sabia que tinham deixado chegar. Essa torcida que na hora que o Pet bateu o escanteio já sentiu o gol do Angelim.

Eu não ia acreditar se em 81 me falassem que o Flamengo ia demorar 38 anos pra ganhar a Libertadores de novo. A gente não sabe o que vai acontecer pro futuro. Podemos empilhar 9 Libertadores em 10 anos ou passar 20 anos em jejum. Esse título fortalece nossa CULTURA DE CLUBE.

Não tem como por um preço nisso. É mais do que o título em si, é um conceito, é nossa identidade. É pra saber que se tudo der errado, daqui há 20 anos nossas crianças vão estar fazendo como as de 10 anos atrás fizeram.

Enfim, eu acho que por hoje é isso. Vou tentar responder às notificações dos amigos. Forte abraço e SRN!