Thread by @lucasmafaldo

O Toffoli se enrolou todo na resposta sobre democracia pelo mesmo motivo que os pronunciamentos oficiais dos ministros são um saco: uma cisão profunda entre linguagem escrita e oral.

A cultura oficial brasileira é artificial demais. As pessoas não sabem falar com naturalidade.

O texto escrito tem o mérito de permitir concentrar a atenção e explicitar conexões lógicas. Por isso, escrever e ler é um bom exercício.

Porém, esse exercício pode ser praticado em excesso. É perfeitamente possível ser lógico demais, por mais estranho que isso pareça.

O raciocínio lógico consiste em estabelecer relações formais entre diferentes objetos. Porém, a inteligência mesma consiste em ir além das abstrações e perceber o que está acontecendo na realidade concreta.

Isso exige várias outras habilidades, incluindo atenção...

... empatia, imaginação.

Todo mundo que já entrou na famosa DR já passou pela experiência de ver um momento de inflação lógica. Toda briga de casal tem argumentos perfeitamente lógicos, quando tomados isoladamente.

O que torna o argumento da briga problemático é o contexto mais amplo: a pessoa acaba usando um argumento logicamente coerente com o intuito de ferir o outro, por estar magoado com outra coisa totalmente diferente. Ou seja, o problema não é a coerência lógica, mas a intenção.

Uma cultura excessivamente textual incentiva essa inflação lógica: as pessoas são incentivadas a criar textos cada vez mais detalhados, porque apenas o texto realmente importa.

Porém, e;as vão ficando progressivamente mais incapazes de falar com naturalidade até sobre o assunto

... dos seus textos, já que não dá para tacar um "outrossim" no meio de uma conversa normal.

Em certo sentido, Platão tratou disso no Fedro, com a crítica à escrita. Porém, eu entendo que o problema não é exatamente a escrita, mas o formalismo...

... o qual pode muito bem aparecer em discursos orais, como é característica marcante da cultura brasileira oficial.

No fundo, ler e escrever demais é como passar o dia todo na academia fazendo apenas um exercício. O sujeito fica com uns músculos bombados, mas não...

... é capaz de usar a força em nenhuma situação real, pois os vários músculos auxiliares ficaram subdesenvolvidos.

É um pouco por isso, aliás, que Bolso sobreviveu aos ataques de Moro. Apesar da bolsológica não ser nenhuma Bastremp, ele fala com muita naturalidade, aludindo sempre ao contexto maior em que está inserindo. O Moro chegou com documento escrito, preparado, o que certamente...

... garantiu que ele evitasse qualquer declaração que poderia complicá-lo na justiça (atacando o presidente, mas sem incorrer em prevaricação ou falsa acusação), mas isso retirou a força retórica da sua declaração.

O que funciona em tribunais e bancas de doutorado não funciona..

... tão bem no dia-a-dia, onde as pessoas se perguntam também sobre os elementos clássicos da retórica (contexto, caráter do orador, intenção, etc.), que vão além da coerência lógica do texto.

Inclusive, por isso mesmo já no dia da coletiva do Moro, eu disse que esse...

... papo de "nome forte para 2022" estava furado (a própria expressão, aliás, é artificial; ela revela que quem falou está desconectado da sociedade, já que ninguém usa isso no dia-a-dia).

A política é fundamentalmente uma atividade retórica: construir discursos para mobilizar..

... a população. Tentar ser político sem saber falar é coisa de tecnocrata.

A tecnocracia até funciona por um tempo (é só ver que é mais ou menos o que já temos, como o STF no poder), mas o povo está ficando cada vez mais revoltado em ser ignorado.