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Era agosto de 1977, ninguém sabe bem o dia.

Meus pais moravam no Edifício Bogotá, 1302, na Av. Nossa Senhora de Copacabana, Rio de Janeiro.

Minha mãe fazia doutorado em letras, meu pai tentava derrubar a ditadura e, naquele belo dia perdido, eles resolveram se amar.
Daquele amor incandescente minha mãe engravidou.

Por todas as razões eu deveria ter nascido carioca. Mas, ao fazer uma visita à maternidade, minha mãe descobriu que eu não ficaria junto dela após o parto, mas num berçário, e ela disse:

- Jamais. Vão roubar meu bebê lindo.
Diante disso, mamãe se meteu de mala e cuia num avião da Transbrasil e se mandou de volta para Belém, isso já em março, eu já beirando o mundo.

Chegando aqui, onde morar?

Minha mãe tinha sido recém aprovada como professora da UFPA e deu entrada num pequeno apartamento.
Residencial Batista Campos, que, apesar do nome, fica no Jurunas.

Era um apartamento novinho, mas meu pai teimou fazer reformas que demoraram, demoraram...

E fomos passar essa chuva na casa da minha avó paterna, Daisy, uma casa grande e quieta.
Meu avô trabalhava muito, meu pai tinha acabado de montar uma banca de advocacia e minha avó vivia na rua.

Conclusão: minha mãe, barriguda de mim, ficava sozinha aos cuidados de uma empregada chama Lídia, vinda das brenhas de Capanema.

(Mamãe fazia ioga)
Lídia era baixa, tinha uma bunda enorme e vivia rebolando.

Minha mãe chamava, LÍDIA, LÍDIA, e dez minutos depois aparecia Lídia perguntando: Dona Lila, a senhora me chamou?, com a cabeça escorada no punho da vassoura.

Lídia vivia contando histórias de visagens para minha mãe.
No dia 10 de maio minha mãe foi ao médico, e ele foi taxativo: essa criança só nascerá no dia 20 de maio.

Pois bem, no dia seguinte, 11 de maio, a bolsa que me guardava estourou.

Dessa vez, não sei por qual desatino, mamãe gritou LÍDIA, LÍDIA, e Lídia veio rápido.
Entramos no hospital de manhã, mas só nasci às 19:00 do dia 11/05.

Clínica Dalmazia Pozzi, Rua João Balbi, 753. Belém.

Foi lá que nasci e chorei pela primeira de muitas vezes (sem nem saber que existiam outros choros tão sentidos).
Estando tudo normal, dias depois voltamos para casa, mamãe ainda na mesma rotina de solidão, agora, mais a chamar LÍDIA, LÍDIA, para, dez minutos, 20 minutos depois, ouvir o “Me chamou, Dona Lila”.

Cansada, minha mãe resolveu ela mesma fazer algo, recém-operada.

Deu mal.
Vamos falar rapidinho de Camilo Salgado, médico de alma boa que virou mito para muitos paraenses, cultuado como santo popular.

Dizem que seu espírito ajuda os doentes. Dizem que ele aparece e salva os desassistidos.

Naquele dia, Camilo apareceu em forma de gaveta.
Porque minha mãe, vejam bem, por suas andanças pelos antiquários de Belém, acabou comprando um armário enorme que pertenceu justo ao falecido santo popular.

E botou o armário justo no seu quarto de dormir, esse que aparece por trás do meu choro.
Abrindo uma gaveta do armário, ainda cheia de costura, desistindo do LÍDIA, LÍDIA, minha mãe abriu sua barriga em vários pontos.

Uma dor enorme. Um grito. Sangue. Desmaio. Eu, no berço, fazendo bue bue, e Lídia, mais uma vez, vindo correndo de forma inesperada.
Para todos, susto. Para minha mãe, repouso absoluto.

E, ainda na sua solidão, minha mãe sofria na mão da Lídia.

- Dona Lila, já vi muita visagem nesse quarto. Outro dia saiu um homem todo de preto de trás dessa cortina. Eu? Corri, né? A senhora nem pode correr, né, Dona Lila?
Então mamãe gritava SAÍ, LÍDIA, ME DEIXA, enquanto segurava o riso para não ter dor, e Lídia saía rindo e rebolando.

Lídia dizia que o velho Camilo Salgado estava por lá, ela sentia, sempre seguida das constatações:

- E a senhora nem pode correr, né Dona Lila?
Passado um tempinho, finalmente o apartamento do Conjunto Batista Campos ficou pronto e nos mudamos, deixando a casa da avó Daisy e do avô Fernando.

Meus pais começaram sua vida de casal, agora com filhos, que era só risos e alegrias.
E para, contrataram uma babá, também vinda do interior, como eram quase todas as domésticas.

Ela se chamava Edith, com a Piaf, e como um piaf (pardal), nossa Edith me cantava músicas de encantamento e de igreja, coisas que minha mãe diz serem de outros tempos.
Edith me amava enormemente. Se eu tinha gases, Edith não dormia. Se tinha febre, Edith chorava. Se eu estava bem, Edith sorria e éramos felizes passeando pela Rua Conceição, bem defronte nossa porta.

Mas Edith também tinha seus estranhamentos...
Certa vez - eu já andava - minha mãe resolveu ver um navio-museu que estava atracado na Escadinha.

Edith, sem qualquer explicação, ficou nervosa e chorou o caminho todo dentro do táxi. Minha mãe perguntou a razão do choro. Ela só disse que estava preocupada com algo.
Chegando na Escadinha, todos deslumbrados com o imponente navio, bastou um segundo para eu aprontar.

Me meti por entre as grades da Companhia das Docas, bem na beira do cais, com o rio revoltado lá de baixo.

Cair era morte, eu, tão pequeno.
De repente, a festa pelo navio parou e todos começaram a me chamar, pedindo que me afastasse da beira.

Quem disse que eu, bebê, entendia?

Fui me aproximando, me aproximando, as pessoas gritando, minha mãe chorando, os guardas das Docas correndo para dar a volta para me pegar...
...e quando vi aquilo (devo ter ficado nervoso), me aproximei da derradeira beira e cairia.

Minha mãe já me viu morto, afogadinho, dentro do caixão branco...

Mas, no último segundo, um raio passou pela perna de todos, num quase cair no chão.

Ninguém soube explicar.
Edith conseguiu se jogar, com o braço estendido, e encaixou o ombro em um vão de grade mais largo e, certeira, segurou firme meu calcanhar.

Eu chorei, bue, bue, queria me soltar, bue, bue, e Edith no chão, sem conseguir me puxar, mas garantindo minha vida com suas garras.
Os guardas deram a volta pode dentro do galpão e me resgataram são e salvo.

Minha mãe ainda chorava, mas, agora, eram lágrimas de vida.

E só então perceberam Edith, toda rasgada, toda arranhada, sangrando do salvamento em se jogar em plena pedra.

Tudo isso faz 42 anos.
Segunda agora fiz aniversário e tanta coisa me voltou. Talvez seja o isolamento, a pandemia. Não sei.

Meus avós todos morreram e faz 24 que não piso na casa onde “nasci”, no quarto onde 1º vivi. A casa ainda está de pé, alugada, mas passou a ser absolutamente estranha para mim.
A Clínica Dalmazia Pozzi foi demolida e construíram um prédio enorme no terreno. Um dia visito o local para procurar meu umbigo enterrado.

O apartamento do Conj. Batista Campos foi vendido para um vizinho, que ampliou sua morada.
O velho armário do Camilo Salgado pertence a meu irmão, também médico, e quem sabe isso não o ajude a ser o excelente profissional que é, humano e amoroso com seu paciente?
Lídia foi trabalhar em um hospital, emprego que meu avô arrumou para ela, lugar propício para ver suas visagens.

E da Edith, que me salvou com seu pulo certeiro de proteger a cria, ninguém sabe nada. Espero sempre que esteja viva e esteja bem. E que seja feliz.

Fim
P.s.: desculpem o fio melancólico, mas assim têm sido meus dias.
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