My Authors
Read all threads
Bom dia. Prometi que escreveria sobre a possível renovação da esquerda brasileira a partir do que foi ontem. Então, segue o fio
1) Começo resumindo o que foi ontem. Ontem tivemos manifestações fortes em muitas capitais do país. Os manifestantes eram, em sua maioria, jovens negros, trabalhadores da limpeza urbana, do pequeno comércio (farmácias, padarias), moradores das periferias
2) Não foi significativo o número dos que portavam bandeiras de partidos (havia as do PSTU, UP e PCB, mas também alguns militantes assustados do PCdoB e PT), mas todos foram acolhidos pelos que protestavam. As falas e palavras de ordem eram novas, mais agressivas
3) Colhi vários depoimentos e falas de gente que andava nas ruas. Convergiam para aquele orgulho meio irônico dos jovens da periferia dos grandes centros urbanos. Sempre que falo para gente da periferia, ouço o mesmo: "somos perifa, aqui não entra qualquer um".
4) Pois bem, esse discurso estava nas ruas do domingo. Eles diziam que apanham da polícia toda semana e que não tiveram como se esconder do Covid19 porque pegam ônibus diariamente para poder trabalhar. Não há como fugir da realidade para esse pessoal
5) O mais interessante é que ironizavam o que chamavam de "esquerda branca de classe média". Muitos diziam que somos covardes ou "preguiçosos" (esta leva a ironia fina dos negros da periferia, gente que fala com um sorrisinho irônico no canto da boca).
6) São jovens, saíram às ruas porque saem todos os dias. E continuarão saindo. Eles enfrentam a PM há tempos, nos seus bairros, no morro, nos jogos de futebol. Conhecem esta violência institucional desde crianças.
7) Parte deles está chegando na política por esses dias. Começaram a perceber que os ataques ao bolsonarismo não era discurso despeitado de quem perdeu as eleições. Nem gente que quer a ter uma boquinha. Começaram a perguntar o que é ditadura.
8) Vários vieram pelo chamado das torcidas organizadas. Que decidiram se unir para enfrentar esse pessoal que conhecem bem: a repressão das policiais militarizadas que perseguem pretos pobres. Já havia visto essa reação dos jovens da periferia em 26 de junho de 2013
9) Mas, e a esquerda tradicional? Como agiu? Com covardia extrema. Trata-se de uma esquerda desconectada do mundo real, focada em valores da época do lulismo. PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT possuem um quinta dos vereadores e prefeitos do país. É um exército político
10) O PSOL foi à guerra, mas os outros 4 partidos que citei ficaram no muro. Em Belém do Pará, os 5 se uniram para não apoiar as manifestações. Algo raro na última década. Quais os motivos desta paúra? A leitura parlamentar do jogo político que os engoliu
11) A lógica parlamentar é marcada por uma estética da fala: discursos épicos, definitivos, muitas vezes, de confronto. Porém, a prática é cândida, de longas e permanentes negociações com seus pares no parlamento. Jogam em espaços curtos fazendo jogadas capciosas
12) A esquerda tradicional brasileira é dominada por este estilo parlamentar, discursivo, de pouca prática incisiva no mundo real. Fazem notas públicas, petições online, distribuem whatsappe e email de autoridades públicas para serem pressionadas via internet. Esse jogo estético
13) Pior: desde o impeachment de Dilma, destilam um discurso defensivo e medroso. Vários expoentes desta esquerda de tipo parlamentar - que muito fala e pouco faz - começaram a bradar que o golpe está perto, que não haverá eleição, que o apocalipse é "now"
14) Já sugeri que se trata de uma faceta do transtorno do estresse pós-traumático. O impeachment de Dilma, a prisão de Lula e os absurdos votados pelo Congresso Nacional se somaram às eleições de alguns governadores e um presidente de extrema-direita. Arriaram.
15) A esquerda acometida por transtorno do estresse pós-traumático temem a extrema-direita. Acredita que formaram um bloco poderoso, articulado aos interesses dos EUA, fechado no apoio das FFAA e das PMs estaduais, com um núcleo de apoio social estabilizado ao redor de 30%
16) Essa leitura enviesada acaba invariavelmente sugerindo que já vivemos uma espécie de ditadura velada. A construção discursiva é absolutamente subjetiva, sem base na realidade concreta, um rebaixamento conceitual e político que raramente presenciamos na história da esquerda
17) o medo e a baixa autoestima começaram a derrotar moralmente esta esquerda de tipo parlamentar. Andar como siri; correr como siri para dar impressão de movimento, aquele jogo do Dunga para inglês ver. Não poderia dar em outra: condenaram a saída às ruas
18) Sair às ruas, disseram, seria dar pretexto para uma intervenção militar. Não importavam a queda de popularidade de Bolsonaro e seu governo, os rachas no interior do governo, o enfrentamento sóbrio do STF aos desmandos do governo, as reações de jovens nas redes sociais
19) não importaram os dados sobre aumento estratosférico dos índices de desemprego, as ações de solidariedade envolvendo muitas organizações populares, a queda vertiginosa de renda dos pobres, as mortes diárias por Covid19. Para a esquerda parlamentarizada, os dados são adornos
20) Enfim, a esquerda parlamentarizada é aquela que não consegue utilizar os dados objetivos da realidade e não conseguem enxergar os sinais da subjetividade popular. Porque está sempre na tribuna. Esta esquerda parece envelhecida precocemente, embebida em formol
21) Mas, no confronto com o que ocorreu ontem, esta esquerda deixou estampada a diferença dos ambientes em que ficou parada neste domingo e o ambiente para onde foram os jovens negros das periferias. Um apartheid comportamental de grande envergadura
22) O discurso de muitos jovens que ontem estavam nas ruas era irônico, forte, de esquerda ou flertando com os valores de esquerda. Nenhum de direita. Todos falavam do enfrentamento de classe. Sim, usavam o termo classe social. Não estavam para brincadeira.
23) Então, aqui vai minha percepção: ali pode estar a renovação da esquerda brasileira. A de um novo ciclo, mais pujante, com menos vícios institucionais. Talvez, esteja apontando o começo do ocaso do lulismo. Um bastão repassado em que o corredor de antes já cumpriu seu papel
24) Esta possível renovação das esquerdas é mais ousada, mais curtida pela vida, menos classe média, menos branca, menos masculina. Aprenderá a lidar com o jogo de xadrez, mas, agora, prefere boxe. Se puder mesclar os dois tipos de jogo, será mais preparada que a esquerda atual
25) Aguardo confirmação. Sociólogo é preparado para ler tendências. Algumas se realizam, outras minguam no desenrolar dos acontecimentos. Sociólogo não prevê, mas treina seu olhar para enxergar tendências. Esta é uma: a esquerda acovardada deu lugar aos jovens da periferia (fim)
Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh.

Keep Current with Rudá Ricci

Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

Twitter may remove this content at anytime, convert it as a PDF, save and print for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video

1) Follow Thread Reader App on Twitter so you can easily mention us!

2) Go to a Twitter thread (series of Tweets by the same owner) and mention us with a keyword "unroll" @threadreaderapp unroll

You can practice here first or read more on our help page!

Follow Us on Twitter!

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3.00/month or $30.00/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!