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Meu avô, Álvaro Tupiassu, era coletor de impostos num tempo em que não havia sistema bancário como temos hoje, muito menos havia agências bancárias pelo interior do Pará.

A prática era desgastante e ele era responsável por coletar impostos no baixo Amazonas.
No tempo certo, ele saia de barco percorrendo a região e batendo contas.

Funcionava assim: a pessoa dizia quanto devia de imposto, ele auditava as contas, recolhia os valores e trazia a grana para Capital.

Era uma coisa tão maluca que, por vezes, ele nem descia em Belém.
Se havia outra viagem agendada, ele mandava telegrama avisando o dia da chegada e minha avó, pacientemente, ia pra beira do porto esperar por ele.

Se beijavam, trocavam novidades e ele entregava o dinheiro para que ela levasse à Coletoria, que funcionava no Solar da Beira.
No interior do Pará, por vezes os impostos eram pagos em ouro puro. Não foram poucas as vezes que minha avó saia com uma caixa de ouro do porto para entregar na coletoria.

Dinheiro ou ouro, minha avó levava, entregava direto às autoridades junto com toda papelada.
Depois, ela esperava os recibos de quitação comprovando que meu avô fazia tudo certinho.

E ele fazia tudo tão certinho que jamais pediu ou recebeu propina, ou agrado que fosse.

Também, apesar de ser autoridade do Estado, nunca fez desmandos.
E essa honestidade resultava num salário baixo e numa vida extremamente limitada de minha família.

Não são poucos os relatos de míngua, pobreza e falta material na infância de minha mãe.

Com 8 filhos, as roupas, sapatos e brinquedos passavam de um ao outro.
E o último sempre tinha as coisas quase puídas.

Não faltavam lições de honestidade e honra, sem falar de doses enormes de carinho e amor, que eram, muito e sempre, representadas por pequenos presentes baratos que meu avô trazia dos interiores por onde passava.
Foi numa dessas viagens, na ânsia de encontrar presentes interessantes aos filhos, numa vila perto de Oriximina, que meu avô avistou uma senhora quase matinta pereira, cabelo desgrenhado, roupa de mata, indígena em tudo, e que ostentava um belo muiraquitã amarrado no pescoço.
Quando viu aquilo, meu avô pensou logo em minha mãe, sem nem saber a explicação.

Ele contava que se aproximou da mulher e, educadamente, perguntou se ela aceitaria vender o muiraquitã.

A mulher logo se ofendeu e disse que não venderia.
Disse que o sapinho estava na família dela desde a mãe da mãe da mãe dela, que era Amazona e tinha recebido o sapinho do fundo de um igarapé.

Meu avô ainda insistiu oferecendo quase o que não tinha, mas a mulher foi ríspida com ele e sumiu no mato depois de pegar uma encomenda.
E meu avô, com ideia fixa no muiraquitã, tratou de comprar outra coisinha para mamãe e partiu no dia seguinte rumo a Óbidos.

Meses depois, quando aquele vilarejo estava novamente na rota, já no barco meu avô lembrou do muiraquitã e da mulher matintaperê.
Ele lamentava não ter conseguido comprar o sapo verde de presente, pois sempre ouviu falar na lenda do muiraquitã.

Meu avô era meio místico.

Por alguma razão, naquele dia ele se colocou na proa do barco, observando a cidade chegar aos poucos, ao longe.
Foi quando ele percebeu, na bruma da manhã, ainda quase em escuridão, uma mulher bem na beira do trapiche.

A mulher parecia agoniada, inquieta, andando de um lado ao outro e era muito magra.

Meu avô se assustou quando o barco chegou mais perto e reconheceu a mulher do sapo.
Mal ele desceu do barco, a mulher pulou em sua direção com as mãos fechadas, tentando entregar algo que ele não conseguia distinguir.

Era o muiraquitã.

A mulher falava desconexa e empurrava o muiraquitã no bolso do meu avô, que tentava entender a situação.
E ela só dizia “leve, leve, é seu, me livre disso”, enquanto meu avô perguntava se ela então aceitava vender, até que a mulher começou a chorar e gritar no meio do porto de Oriximiná.
- NÃO QUERO VENDER.

LEVE, É SEU, NÃO AGUENTO MAIS!! DESDE QUE PEDIU PRA COMPRAR QUE SINTO DOR, MINHA CABEÇA DOI, MEU CORPO DOI E O CABOCO BATE NA MINHA PORTA E MANDA EU LHE DAR ISSO. É PRA SUA FLOR, LEVE PRA SUA FLOR - ela gritava.
Vovô ainda tentou mandar algo para a mulher, quis comprar alguma coisa num armazem próximo, mas ela mandou devolver dizendo que não podia aceitar, caso contrário os seres da mata, aqueles que talharam o muiraquitã, não a deixariam em paz e ela morreria.
A mulher deixou o muiraquitã nas mãos do meu avô, completamente assustado e sem reação, e sumiu no mato da beira do rio.

E, bem... ele queria o muiraquitã para dar para minha mãe.

E minha mãe chama Amarilis.

E Amarilis é o nome de uma flor.

(Mamãe em seus 15 anos)
Meu avô voltou a Belém e deu o muiraquitã para minha mãe, que guarda ele como tesouro de família até hoje.

Já foi estudado pela UFPA e pelo Goeldi, que não entendem como foi lapidado ou com foi feito o buraco do fio.

Para quem quiser saber mais, o link.
scielo.br/pdf/aa/v32n3/1…
Como amuleto, minha mãe já emprestou para diversas pessoas amigas, principalmente em tratamentos de doença, e, talvez por coincidência, todas elas se curaram e seguem bem até hoje.

Ps.: ele é feito de nefrita, uma rocha verda, bem parecido com jade.
E, estudando a mística do muiraquitã, a gente descobre que ele jamais pode ser comprado, somente dado.

Da mesma forma que, no culto da Umbanda/tambor de Mina (no Pará), há um caboclo chamado Tupiassu cuja cor do ponto escrito é verde da cor de um muiraquitã.
Das coincidências da vida que, por seus caminhos misteriosos, fizeram uma peça de talvez 500, 400 anos, parar nas mãos da minha mãe.

Um amuleto tão mágico e místico que o simples tocar te arrepia todo o corpo.
Coisas que a gente não consegue explicar, embora a explicação seja até óbvia.

E obrigado, @lorefil, por algumas informações dessa thread.
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