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Quando eu era criança, moramos um tempo em Osasco.

Na época a cidade era pequena e pouco atrativa, mas morar lá era uma necessidade: com grana curta, meu pai aceitou trabalhar como zelador de um prédio antigo, que havia sido uma espécie de reformatório infantil.
O prédio estava abandonado, apesar de estar intacto.

O trabalho do meu pai era limpar o local e mantê-lo em ordem, até que uma questão judicial fosse resolvida, e assim ele fazia.

E nós ocupávamos uma casa grande e confortável que tinha no fundo do terreno.
Imagina a minha felicidade naquele mundo, aquele espaço todo só para mim, local que já tinha pertencido a tantas crianças e que, agora, era só meu.

E ainda tinha muitas crianças pela vizinhança, que sempre vinham brincar comigo, então nunca me senti só.
E uma das coisas que eu mais gostava era brincar de roda.

Meus vizinhos sabiam todas as cantigas de roda, então passávamos a tarde brincando e cantando, até que minha mãe chamava para a janta, já quase de noitinha.

Tudo ia bem, até que ele chegou...
Acho que ele se chamava Gastão, mas faz tanto tempo e minha memória não ajuda.

Ele havia se mudado fazia pouco tempo para o bairro e começou a brincar conosco, mas ele era irritante e vivia implicando, principalmente comigo, ou só comigo.
Lembro que as provocações foram ficando cada vez pior, e me irritava que nenhuma das outras crianças fizesse algo para me ajudar.

Eu era o mais novo de todos e parecia que o Gastão mandava nos demais, que ficavam calados diante de tantas grosserias comigo.

Até que um dia...
Bem... na nossa brincadeira de roda de sempre, Gastão começou uma música que fazia tempo eu não ouvia...

🎼A canoa virou
Por deixá-la virar
Foi por causa do Indiozinho
Que não soube remar
Se eu fosse um peixinho
E soubesse nadar
Eu tirava o Indiozinho
Do fundo do mar
Só que Gastão começou a mudar a letra e usar meu nome, e mudava os fatos e eu ficava muito triste.

🎼A canoa virou
Por deixá-la virar
Foi por causa do Fernando
Que não soube remar
Se eu fosse um peixinho
E soubesse nadar
Eu mandava o Fernando
Pro fundo do mar
E ele cantava aquilo quase berrando, de uma forma assustadora, e as outras crianças também cantavam e gritava e riam igual a ele, e eu morria de medo, o menor da turma... isso tudo enquanto eles rodavam e rodavam ao meu redor!!!

Até que não aguentei e corri para casa.
Mas, a partir daquele dia, Gastão passou a me importunar diariamente cantando aquela música, sempre repetindo o trecho final, que mais me dava medo.

🎼Se eu fosse um peixinho
E soubesse nadar
Eu puxava o Fernando
Pro fundo do mar
Acabei brigando com ele e com as outras crianças e pedi que eles não aparecessem mais na minha casa - ao que eles riram na minha cara.

Algumas vezes eles respeitavam, outras vezes eu via eles pelos cantos, me olhando e rindo, quando então eles fugiam ao serem descobertos.
Foram dias tristes e solitários, e acho que meu pai percebeu isso, pois ele começou a buscar coisas para fazer comigo, um bando de programação interessante para me distrair, e realmente me senti bem feliz.

Até que, um dia, ele me convidou para passear pelo Tiete.
O Tiete passava bem pertinho de casa e a gente sempre ia lá aos finais de semana.

Contudo, nós nunca remamos nele, um sonho antigo meu. Naquele tempo o Tiete não era como hoje, era um rio limpo onde se podia nadar, apesar das suas águas perigosas.
E assim fizemos. Meu pai conseguiu uma canoa com um amigo e partimos, eu e ele, para uma breve aventura.

Tudo ia bem, meu pai até pensou em pescar, quando, do nada, um vento forte começou a dificultar as remadas. Meu pai ia ficando cansado e vermelho.
E o vento soprava cada vez mais forte, as ondas cresciam e barquinho balançava, e eu me segurava onde podia no barco quase casquinha no meio daquele riozão.

Aí, começou a chover e tudo foi ficando escuro, como se fosse uma grande e repentina tempestade.
Foi então que comecei a ouvir, por entre o lufar do vento, a música que tanto me incomodava e amedrontava, na voz do Gastão que eu detestava.

🎼Se eu fosse um peixinho
E soubesse nadar
Eu puxava o Fernando
Pro fundo do rio...

Comecei a chorar.
E no meio do barco que ia violentamente de um lado ao outro, com meu pai nervoso tentando segurar os remos e a mim, mais o vento impiedoso, mais a chuva que caia, mais a luz que sumia

No meio disso tudo, não sei como aconteceu, mas senti algo me agarrar pelas costas e me puxar!
Quando dei por mim, estava no meio do rio, envolto pela água, prendendo a respiração sabendo que minha vida dependia daquilo.

Apesar da escuridão, eu conseguia ver o casco do barco de meu pai ainda flutuando, marcado pelos trovões.

Tentei nadar, mas algo me segurou.
Quando olhei para baixo, havia um ser, uma espécie de mostro que me segurava os pés e me puxava para o fundo enquanto ria.

Naquele momento, percebi que morreria. O peito ardia do ar preso, a garganta quase explodia, e num último olhar para aquele monstro, pude ver...
Ele tinha a cara do Gastão, mas com traços malignos, monstruosos, terríveis.

Para meu maior susto, nesse mesmo momento ele sorriu para mim, como se satisfeito com o que acontecia ali, minha morte.

Soltei o ar e a água invandiu meu corpo. Ia morrer.
Mas, num último instante, senti um baque a meu lado, alguma coisa pesada que caia e me procurava. Era meu pai, que tateando as águas, pegou nos meus cabelos e me puxou com força para cima.

Foram longos minutos de tosse e vômito, botando para fora a água engolida.
E lembro de chorar muito de medo, abraçado a meu pai, enquanto ele remava com força para nos levar para a margem.

Já em casa, contei tudo a meus pais... dos vizinhos que implicavam comigo por conta do Gastão, das brincadeiras sem graça que ele fazia comigo...
...mas, principalmente, falei de como aquilo estava me afetando, ao ponto de ter escutado, no meio de tempestada, a música, e de ter tudo a impressão de um monstro marinho parecido com meu vizinho.

E meus pais ouviam tudo brancos, sérios, se entreolhando, até que minha mãe falou
- Filho... não tem nenhuma criança aqui. A vizinhança está quase toda vazia, igual esse prédio. Logo logo isso tudo vai ser derrubado para virar um residencial.

- Mas eu brinco com eles todas as tardes, mãe.

- Filho... você brinca sozinho todas as tardes. Não tem ninguém.
No dia seguinte meu pai entregou a vaga e voltamos para a casa dos meus avós, do outro lado da cidade.

Havia algo ali que tinha inveja por eu estar vivo, e era melhor não dar chance ao azar e devolver o local a seus únicos donos.

Fim.
História inspirada no relato da @roupadeidosa

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