My Authors
Read all threads
Elementos referentes à Idade Média, como sujeitos fantasiados como cavaleiros medievais, aparecem nos mais diversos formatos em estratégias de apoio ao bolsonarismo. Por que a extrema-direita no Brasil e no mundo têm se interessado tanto pela Idade Média? Segue o fio! 🧵
O primeiro passo para entendermos essa associação é conhecer a diferença entre reminiscências medievais e medievalismos.
As reminiscências medievais, conforme o Professor José Rivair Macedo, são elementos que surgiram nesse período que chamamos de Idade Média, mas que ainda estão presentes em culturas dos nossos tempos. Por exemplo, o relógio mecânico e talheres.
A primeira imagem é o abade Richard Wallingford apontando para o relógio que deu de presente para a abadia, 1380 commons.wikimedia.org/wiki/File:Abbo…

A segunda imagem é uma faca com cabo de marfim do final do século XIV gothicivories.courtauld.ac.uk/images/ivory/E…
Já os medievalismos são definidos por Ute Berns e Andrew James Johnston como todas as formas por meio das quais a Idade Média for aprendida e construída por períodos posteriores.
A relação da extrema-direita com a Idade Média não lida com reminiscências medievais, mas com a produção e o consumo de medievalismos. E não foi ela quem inventou tal prática.
O primeiro medievalismo, e um dos mais importantes, foi criado pelos humanistas dos séculos XVI e XVII, ao chamarem a Idade Média de Idade das Trevas.
A “espessa noite gótica” da qual falou Rabelais (1494-1553) segue ainda hoje fazendo com que o medievo seja um sinônimo de atraso e ignorância, quando a pesquisa já demonstrou o contrário há décadas.
Com isso, os humanistas pretendiam ressaltar o discurso que os representava como o auge da humanidade. Para tanto, rebaixaram a Idade Média.
O Iluminismo repetiu a mesma estratégia dos humanistas. Com a Igreja e a Nobreza como adversários, cujas raízes remontavam à Idade Média, repetiram tal ideia de Idade das Trevas.
Voltaire (1694-1778), por exemplo, descreveu a Idade Média como uma época de caos político e cultural, que tinha sido salva pelo renascimento dos séculos XVI e XVII.
Mas os medievalismos nem sempre são usados para criar uma imagem “negativa”. O romantismo criou uma imagem da Idade Média marcada pela presença de santos piedosos e cavaleiros sempre corajosos e honrados, dispostos a qualquer sacrifício em defesa dos fracos e oprimidos.
A pesquisa também tem mostrado que assim como a Idade Média não foi uma época de caos e violência generalizada, também não foi um conto de fadas. Essa imagem do cavaleiro honrado sempre pronto ao sacrifício pelos necessitados surgiu, de novo, em outro contexto.
Nesse cartão postal nazista produzido por Hubert Lanzinger por volta de 1935 temos um Führer representado como um altivo cavaleiro em armadura reluzente. Adolf Hitler foi pintado, do alto dos seus 1,75 m, como o grande cavaleiro que protegeria o III Reich. akpool.co.uk/postcards/2624…
E aqui já temos outra referência medieval: Reich. O III Reich seria governado por Hitler, o segundo teria sido o Império Alemão (1871-1918), com o imperador Guilherme II e o chanceler Otto von Bismarck. E o primeiro?
O Reich "original", do qual derivariam os demais, teria sido o Sacro Império Romano Germânico, entre a Alta Idade Média e 1806. A referência a ele é uma tentativa medieval de recriação de uma autoridade imperial, nos moldes romanos.
Na imagem acima, uma ilustração da estrutura do Império que consta na Crônica de Nuremberg (1493) commons.wikimedia.org/wiki/File:Sche…
Todos os três reich tinham em comum uma pretensão de autoridade universal que nunca se efetivou. E o segundo e o terceiro remeteram ao primeiro com o objetivo de construir um discurso de ancestralidade do poder.
O cartão postal nazista não foi a única tentativa de construir um discurso de autoridade por meio de medievalismos por parte da extrema-direita.
Em 22/07/2011, o norueguês Anders Brevik, em um ato terrorista, fuzilou várias pessoas. A maioria jovens ligados ao Arbeiderpartiet norueguês (Partido dos Trabalhadores). O ataque começou com explosões em Oslo e terminou com a chacina na ilha de Utøya, onde ele foi preso.
Brevik justificou estar em defesa do Ocidente e daqueles q seriam seus valores. Seus argumentos demonstravam um conservadorismo radical, ultranacionalismo, racismo, homofobia e antifeminismo, além de defender que a Cristandade estaria ameaçada pelo marxismo cultural e pelo Islã.
Tais ideias estavam marcadamente em seu manifesto, intitulado A European Declaration of Independence. O subtítulo era De laude Novae Militiae: Pauperes commilitones Christi Templici Solomonici.
Em uma tradução livre do latim, fica algo como Sobre o elogio da Nova Milícia: A Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão.
Essa inscrição junto a capa branca com uma cruz vermelha, tal qual a túnica dos cavaleiros cruzados, era parte do discurso no qual Breivik se via como um cruzado da atualidade, em uma guerra santa em defesa do Ocidente.
Em 15/03/2019, Brenton Tarrant perpetrou dois atentados contra mesquitas em Christchurch, na Nova Zelândia. Tarrant, além de idealizações sobre vikings, ecoava os mesmos argumentos de Breivik: estava em uma cruzada em defesa dos valores ocidentais contra o inimigo islâmico.
Ele cometeu 51 assassinatos e feriu diversas pessoas. Suas mochilas e armamentos estavam grafitados com várias menções do que ele entendia como momentos nos quais o Islã havia ameaçado o Ocidente e este teria sido vitorioso. veteranstoday.com/2019/03/18/chr…
Ressaltamos dois elementos muito significativos na imagem: no pente estava escrito Tours 732 e no cano do rifle “Carlos Martel”. Em 732, Carlos Martel derrotou muçulmanos em uma batalha na cidade francesa de Tours.
Ele e sua descendência defenderam uma ideia de que, não fosse essa batalha, a cristandade teria sido dominada pelo Islã. Carlos Martel foi avô de Carlos Magno, o sujeito que criou o embrião do que seria o Sacro Império Romano Germânico.
Sobre a batalha de Tours, Carlos Martel não enfrentou um exército, mas um grupo de batedores. Além disso, o império islâmico já estava ruindo devido a dissidências internas, antes mesmo desse encontro. Assim, Martel não foi decisivo como ele e sua descendência alegaram.
Agora, lembra desse vídeo?
Além dele, dá uma olhada nessa, de quando homens vestidos de cavaleiros templários causaram confusão em uma manifestação feminista em Teresina, no Piauí, 21/12/2019. Esse tipo de fantasia também apareceu nos protestos na Av. Paulista no começo da pandemia, como na segunda foto.
A coisa é mais complexa. Existe um grupo no Brasil autointitulado Cavaleiros Templários do Brasil, “uma organização religiosa, paramaçônica e tradicional com base nos Cavaleiros da Idade Média”. Elegeram Jair Bolsonaro como seu candidato oficial. facebook.com/cavaleirostemp…
A Ordem dos Cavaleiros do Templo, os Templários, deixou de existir após um complô organizado pelo rei francês Felipe IV (1268-1314) que prendeu e executou parte de seus membros e o grão-mestre da ordem em 13/10/1307, o que teria dado origem a ideia do dia 13 como um dia de azar.
Por outro lado, as imagens de Jair Messias Bolsonaro vinculado aos cavaleiros templários – ou destes associados a temas caros à extrema-direita – abundam pela internet, como vocês podem ver.
Mas, o que isso pode nos dizer? O que os cavaleiros templários, que caíram em 1307, tem a ver com manifestações da extrema-direita em pleno século XXI?
Andrew B.R. Elliot nos ajuda a pensar em algumas respostas. A nostalgia seria uma ferramenta poderosa por meio da qual a extrema direita “armamentiza” o medievo.
Sites da extrema-direita, como StormFront e Metapedia, não estão preocupados com verossimilhança histórica, mas em construir um discurso que encontre eco nas aspirações do seu público específico. Assim, eles se autovalidam.
Em cenários de depressão econômica, desinformação, racismo e orgulho nacional ferido, um retorno ao passado soa como uma boa solução.
Esse passado ao qual se retorna possui – e não pode possuir – relação com as evidências históricas. Ela é uma construção que melhor cabe nas fantasias desses extremistas. E, em tempos de pós-verdade, isso é mais fácil do que nunca.
Essa é a primeira de três threads sobre o assunto escritas para o +Hpf pelo professor Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior, professor de história da UFSM.
Nas próximas semanas vamos publicar outras sobre o assunto. Ainda vamos falar sobre o mito de pureza racial na Europa medieval, vikings e cruzadas. Então aperta pra seguir a gente!
Ah, essa ideia de buscar no passado uma referência pra aliviar angústias do presente já apareceu por aqui antes, quando falamos sobre o movimento monarquista. Dá uma olhada.
E de onde veio essas tem várias outras:
Ah! As nossas threads vão vir cada vez mais com sugestões de leituras. Aqui vão as de hoje:

BERNS, U.; JOHNSTON, A. J. Medievalism: a very short introduction. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 31, v. 11, n. 3 (Set./Dez. 2019)
periodicos.ufmg.br/index.php/temp…
GEARY, Patrick. O mito das nações. A invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad, 2005.
Além destes, o prof. Luiz Felipe Guerra (UFMG) publicará um artigo sobre o tema chamado The left, the right, and the Middle: The everblooming shadow of the Middle Ages in the Brazilian presidential elections of 2018.
Esse artigo será parte de um livro organizado pela professora Nadia Altshcull (Univ. Glasglow). Fiquem de olho, pois está imperdível!
Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh.

Keep Current with Mais História, por favor!

Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

Twitter may remove this content at anytime, convert it as a PDF, save and print for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video

1) Follow Thread Reader App on Twitter so you can easily mention us!

2) Go to a Twitter thread (series of Tweets by the same owner) and mention us with a keyword "unroll" @threadreaderapp unroll

You can practice here first or read more on our help page!

Follow Us on Twitter!

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3.00/month or $30.00/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!