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Sobre a polêmica da semana, acho que convém ressaltar, na condição de professor, homem e branco:

1) A intelectualidade (ainda mais essa, tão normativa) precisa cultivar a hermenêutica da suspeita, não para os seus objetos de estudo, mas para sua própria condição de sujeito.
2) Isso significa aceitar que é fundamental situar de onde falamos, o que confere legitimidade para as nossas críticas e o que lhes garante publicidade. Isso situará melhor vantagens e desvantagens estruturais e nos permite um olhar menos ingênuo para a atividade intelectual.
3) Ser intelectual é algo que todo mundo é, pelo menos no meu ponto de vista. Mas é ingênuo achar que não existem estruturas que tornam certas vozes mais ouvidas do que outras - e que isso é diretamente vinculado às estruturas e hierarquias da nossa sociedade.
4) Pode um intelectual branco criticar um intelectual negro? Bem, a crítica intelectual é livre - e deve sempre ser livre. Mas esse sentido de desconfiar de onde falo é sempre importante. Porque na abstração, somos livres, claro.
5) Na prática, em uma sociedade racista, uma voz branca é mais ouvida do que uma negra. A crítica de um intelectual branco costuma por vezes chancelar aquilo que intelectuais negros já falaram.
6) E não só isso: como a linguagem não é neutra, os termos em uso também demarcam hierarquias e estruturas. Vou dar um exemplo prático:

Eu não tenho nenhuma simpatia ao deputado Fernando Holliday. Nenhuma.
7) Tenho objeção a boa parte de seus ideais políticos - e alguns francamente me enojam. Pretendo combater o seu tipo de pensamento político em toda esfera pública que for possível.

Mas isso não me dá o direito de dizer o que ele pode, ou não, pensar.
8) Tomar a posição de que ele é um "outro" que precisa ser "domesticado" é algo bastante absurdo e, no entanto, muito comum ainda nos debates. Não é à toa que alguns de seus críticos usam a expressão "capitão do mato" para se referir ao deputado.

E isso é um problema.
9) A figura do "capitão do mato" retoma a ideia de uma espécie de "traidor da raça". Mas vejam, se eu sou branco, qual a posição em que me coloco para dizer que ele está "traindo a sua raça"? Que por ser negro, ele tem que "agir como negro"? O que é agir como negro?
10) Via de regra, sem fazer o exercício de uma "hermenêutica da suspeita" sobre os nossos próprios discursos, somos capazes de ser críticos a todos os outros - que não agem como esperamos a partir de expectativas construídas, elas também, como estruturas de poder.
11) Mulheres, pobres, negros, indígenas...se a expectativa não é cumprida, significa que não tenho porque reconhecer que aquela voz pode ser proferida.

Por outro lado, como sou normativo, não tenho nenhum problema se não cumpro as expectativas que esperam de mim.
12) Afinal, essa é uma face do privilégio: eu estou tão dotado de poder nas estruturas em que me movimento que sequer sou cobrado por coerência dentro delas. E quando sou, isso ocorre dentro de regras muito específicas e inacessíveis para boa parte das pessoas.
13) Tudo isso aqui só para dizer que a crítica, enquanto atividade intelectual, mais do que nunca, tem que se apresentar de forma dialética: criticar o outro precisa, sim, situar de onde eu venho para fazer essa crítica.
14) Inclusive esse é o maior antídoto para superar o medo de ser acusado de "racismo", "machismo", "homofobia", "elitismo" etc. Fala de onde você vem, de onde tá saindo essa sua crítica. E se propor, então, a reelaborar ela a partir dessa experiência.
15) Em outras palavras, a experiência não é só a cartada que a gente usa para designar nossos objetos. É também o que nos dá sentido e coerência, né não? Nada mais justo a gente trazer ela para os nossos argumentos...até para ver como nossa experiência é, também, limitada.
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