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Sertanejo, estética e hegemonia

Toda vez que repercutem críticas ao sertanejo universitário, logo dizem que qualquer análise suspeita do estilo se trata de "elitismo" e de um "distanciamento popular". Eu acho esse debate um tanto quanto superficial e cheio de espantalhos.👇🏾
Acredito que é importante se perguntar, criticamente, como um estilo musical se tornou tão hegemônico em um país imensamente diverso e grande como o Brasil, especialmente em um contexto de suposta maior descentralização da produção de conteúdo.👇🏾
A abrangência da hegemonia do sertanejo universitário é algo excepcional na história da música brasileira e só isso já nos deveria fazer pensar para além da condescendência "é cultura popular, aceite e não analise/critique nada". 👇🏾

www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020…
Bom, se vamos falar de "popular", é importante saber que o sertanejo venceu algumas batalhas no campo estético e expressivo nas últimas três décadas.

Primeiro, há um processo de fundo ao longo do século XX, que é a "modernização"/eletrificação da música "tradicional". 👇🏾
Nenhum instrumento simboliza mais essa dinâmica que a guitarra. Na sua inserção em diversos gêneros, ela marca e conduz a passagem para uma circulação cultural mais urbana, vertiginosa e acelerada, bem como a reinvenção de códigos tradicionais em uma "estética moderna". 👇🏾
O rock, que surge, em boa medida, de ritmos negros da diáspora, é o exemplo por excelência desse fenômeno. No Brasil, temos todo debate, por exemplo, em torno do disco África-Brasil, de Jorge Ben, que introduz a eletricidade à ritmação afro-brasileira. 👇🏾

Bom, e o sertanejo? No Brasil, esse debate sobre "modernização" do "tradicional" ganha um destaque diferenciado na década de 90. Redemocratização, urbanização caótica, facilidades de comunicação e "globalização" são ingredientes desse caldo. 👇🏾

Modernizar o passado é uma evolução musical, já analisava Chico. É isso que a geração dos 90 está fazendo. Fiquemos na guitarra, que dará o tom dessa lógica. Ela marcará o passo, por exemplo, no forrócore do Raimundos, nos rifs e solos do Chiclete e nos bits do manguebeat. 👇🏾
Ela também conduz a transformação interna dentro do sertanejo. Assim, não só permitirá a inserção do estilo em fenômenos globais (os love songs; a melodicidade do rock da década de 80; o cantar gritado do pop 80/90), mas uma autorreinvenção permanente. 👇🏾

Na disputa em torno da modernização por meio da guitarra nos 90 brasileiro, o sertanejo é o grande vencedor. Alguém já se perguntou por que não se escuta mais rock no Brasil ou por que, entre os três estilos dominantes (funk, rap e sertanejo), só um deles usa guitarra?
Aqui tem uma sacada de fundo. Enquanto o rock se tornou cada vez mais "universitário" e deslocado da sua anarquia-tradição dos 90 (a "loshermanização do rock"), o sertanejo mainstream investiu na continuidade da "eletrificação permanente" do Brasil.

Não é só a guitarra indie (que parece um Two Door Cinema Club) do Jorge e Mateus. Saíamos das cordas. A cozinha do sertanejo expandiu imensamente nas últimas duas décadas, ganhando maior centralidade na música e aparelhagem, dialogando com outros ritmos populares brasileiros. 👇🏾
Isso permitiu um diálogo do sertanejo com dois grandes ritmos em expansão no Brasil dos 90/00, o axé e o funk (inclusive com capacidades de fagocitação). Disso decorreu a inserção em novos públicos e regiões, bem como espaços (ex. carnaval de Salvador).👇🏾

Mas não parou por aí. Rumando a uma das suas origens, as fronteiras do Brasil, o sertanejo incorporou um diálogo intenso com os dois ritmos mais escutados na Am. Latina: a bachata e o reggaeton. Isso trouxe centralidade a instrumentos como o bongô. 👇🏾

Além dessa eletrificação/"modernização" aberta do tradicional, há mais três estratégias vitoriosas do estilo. A primeira é que o seu mainstream foi aquele que mais rapidamente se adaptou às novas plataformas de divulgação de conteúdo, como youtube e spotify. 👇🏾
O sertanejo se valeu/e se vale intensamente de "feats" e convidados na sua autodivulgação. Ou seja, um artista fortalecendo o outro. Isso não só permite a expansão e integração de público dentro do estilo, mas fora dele.👇🏾

Ademais, foi um dos primeiros estilos a abandonar a centralidade da fórmula álbum em estúdio para divulgação do conceito de trabalho. Shows e a ideia do "Ao Vivo" dão o tom. Marília Mendonça foi além no último ano, com seu lançamento itinerante. 👇🏾

Por fim, entre os estilos dominantes no Brasil na última década, foi aquele, de longe, que conseguiu mais incorporar dinâmicas, representações, perspectivas e vozes de mulheres como uma das caras do seu "produto", inclusive o deslocando internamente. 👇🏾

Por que essa história toda é importante? Acredito que por dois motivos sobretudo. Primeiro evita análises superficiais sobre indústria cultural e a construção de uma suposta alienação da população. Se as pessoas escutam e gostam de sertanejo, há sentido ali por trás. 👇🏾
Segundo. Evita noções condescendentes sobre a população brasileira e a ideia de "popular". Se você acha que em 2020 ser "popular" é comer bolo de fubá e tomar café forte todos os dias (e não somente na época das eleições, rs), você só está demonstrando quão preconceituoso é. 👇🏾
Nessa hegemonia musical, portanto, há toda uma tessitura estética, política e afetiva que dialoga imensamente com o nosso país: mas com o Brasil real, dinâmico, contraditório, imenso e complexo. Não o Brasil infantil saído da cebeça de alguns, com doses de pseudopopularidade. 👇🏾
Apontar essa tessitura estética, que contribuiu para a hegemonia do sertanejo (e a derrota ou secundarização de outros estilos), não elimina analisar e criticar como a própria circulação do sertanejo mainstream está atrelado a um projeto de poder, como muitos tentam fazer. 👇🏾
A lógica estética ancora-se, também, em uma disputa sobre o sentido estrutural da "modernização" brasileira nas últimas décadas. Não é mera coincidência essa hegemonia coincidir com um fenômeno profundo de reprimarização e desindustrialização nacional. 👇🏾

paulogala.com.br/ascensao-e-que…
Um exemplo: o Congresso brasileiro é dominado pela bancada BBB (boi, bíblia e bala). Dentro das disputas do nosso sistema eleitoral, as trocas entre entes federativos ainda são extremamente determinantes. Ou seja, circulação dependente entre poder municipal, estadual e federal.👇🏾
Assim, as disputas locais ainda determinam bastante quem é eleito a nível federal. O que o sertanejo tem a ver com isso? Lembra que eu falei que uma das fontes de renda do sertanejo são shows. Pois então: boa parte deles são realizados em parcerias com prefeituras. 👇🏾
Portanto, boa parte da renda que mantém essa hegemonia musical está atrelada à reprodutibilidade de poderes oligárquicos a nível local e nacional. Poderes esses que têm como projeto fazer com que o Brasil permaneça uma grande fazenda do mundo.

oglobo.globo.com/cultura/bolson…
Esse é um exemplo entre vários. Vou além: o que descrevi mais para cima, em termos estéticos na disputa sobre "modernização" brasileira, significa também um processo de fagocitação racista e aniquilamento das contribuições negras e indígenas. 👇🏾

vice.com/pt_br/article/…
Ou seja, dentro do longo devir do capitalismo branco brasileiro, o sertanejo universitário é mais uma etapa de expropriação de formas estéticas e culturais negras e indígenas dentro de uma lógica de mercado e racista. Isso dentro de um projeto de país excludente. 👇🏾
Vocês viram o tanto de referências que fiz a músicas, estilos, ritmos e instrumentos negros e indígenas ao longo da thread? Vários. Agora eu lhes desafio a encontrar um único negro ou indígena no mainstream do sertanejo universitário. Mais um capítulo da nossa longa saga. 👇🏾
Como estou tentando dizer desde o começo da thread: nada é mera coincidência, inclusive os entrelaçamento entre estética e ética; cultura e política. Acredito que o que nos diferencia como esquerda é sempre perquirir os porquês das coisas e não aceitá-las como mero dado.
E sim, minha gente, eu falo de tudo isso porque, além de aficcionado em música, eu sou absolutamente formado na cultura musical sertaneja, diferentemente do que vejo muito por aí de gente querendo pagar de povo que não aguenta dois minutos de Matheus e Kauan. 👇🏾
Além de minha formação de vida ser em boteco escutando música de corno aqui no centro-oeste, sou filho de um sertanejo negro do interior da Bahia, que, entre várias coisas que me ensinou, uma foi gostar de tudo que tem origem caipira nesse país. A outra foi sempre estar alerta.
Começo escrevendo essas threads na boa e, quando vejo, viram textos enormes haha. Marcando amigos famosos que podem se interessar e ajudar a circular: @winniebueno @silviolual @Nailahnv @_makavelijones @rbcgaia @SamuelSilvaFB @Florababylon.

Pedir ajuda não é feio, né? haha ❤️😅
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