As origens escravocratas do sistema eleitoral dos Estados Unidos

Agora que tá todo mundo um tanto quanto embasbacado com a zona que são as eleições nos EUA, podemos nos perguntar como essa patifaria toda começou, não?

Bom, como tudo nas Américas, a raiz é a escravidão. 👇🏾
A virada do século XVIII para o XIX é um dos momentos mais turbulentos da história da humanidade. Uma onda revolucionária percorre o atlântico, na qual as ideias de cidadania, liberdade, igualdade e república tomam conta da arena política. É o surgimento da democracia moderna. 👇🏾
Porém, o liberalismo e o republicanismo conviviam com um lado oculto: a permanência da escravidão e o racismo.

Na França revolucionária, em 1789, alguns dias depois da queda da Bastilha, colonos de São Domingos encaminharam uma petição à recém formada Assembléia Francesa. 👇🏾
Exigiam um número de deputados compatível com a população da Ilha, contabilizando os escravizados e as pessoas de cor, sem, obviamente, implicar no direito de voto para esses não-brancos.

Tal argumento era "contraditório", como explicitava o Conde de Mirabeuau.
A contradição era: como reconciliar os princípios filosóficos do liberalismo republicano com a prática racista e escravista das colônias?

No final das contas, a Assembleia concedeu a São Domingos um número de deputados um pouco maior do que a população branca. 👇🏾
Trouillot, intelectual hatiano, ironiza os limites revolucionários da França:

"Na matemática da política real, o meio milhão de escravos de São Domingos-Haiti e as centenas de milhares nas outras colônias correspondiam no máximo a três deputados - todos brancos, obviamente." 👇🏾
A "controvérsia eleitoral" de "quanto vale um negro?" não era parte somente do circuito Haiti-França. Os haitianos inclusive levarão ao extremo essa tensão, estabelecendo, por meio da maior Revolução da história, que um negro vale um humano. Mas isso é para outro fio, seguimos.👇🏾
Anos mais tarde, nas Cortes de Cádis, em 1811, colonos hispano-americanos e espanhóis estariam envoltos na mesma polêmica. Os últimos diziam que conceder cidadania aos "pardos" era um grande um perigo, pois abria-se a possibilidade de uma Rev. Haitiana na América hispânica. 👇🏾
Os espanhóis afirmavam que as pessoas de cor deveriam esperar e rejeitavam as visões dos americanos, que diziam que a América era perpassada pela "harmonia racial". As elites criollas, por sua vez, reivindicavam a cidadania dos pardos para aumentar sua representação política.👇🏾
O debate é encerrado com vitória dos espanhóis: negação do direito político aos pardos e da igual representação americana.

É a precipitação para que, ainda em 1811, Cartagena declare independência, em um movimento político liderado justamente por homens pardos e pretos.👇🏾
Ou seja, no Atlântico revolucionário, os vínculos entre cidadania e raça eram um barril de pólvora. No Brasil, o medo era tanto que o debate sobre a cidadania dos africanos foi o mais acalorado na Constituinte de 1823. O medo do Haiti reverberam pelas sessões legislativas. 👇🏾
Mesmo aprovada a cidadania dos africanos libertos em 1823, na Constituição outorgada de 1824 tal dispositivo sumiu. Cidadania nas primárias somente para os negros libertos nascidos no Brasil. Era o medo da liberdade africana. O temor da Rev. Haitiana no computo dos "cidadãos". 👇🏾
Diante disso, voltamos para os EUA, a primeira grande república desse atlântico em ebulição.

Durante o processo de elaboração da Constituição estadunidense em 1787, os estados escravistas queriam que os escravos fossem incluídos na contagem da população, mas que não votassem.👇🏾
Já os estados que não permitiam a escravidão não queriam que os escravos fossem contados a menos que eles fossem tratados como cidadão. Diante do impasse, foi fechado um acordo entre o Norte e o Sul, chamado de "pacto com o diabo". 👇🏾
O que o "pacto" estabelecia? Que cada escravo seria contado como o equivalente a três quintos de um homem livre para efeitos de se estabelecer os parâmetros da representação no Congresso.

É o que estabelece o § 3º, da seção 2, do art. 1º, da Constituição dos EUA. 👇🏾
Porém, tal norma não era suficiente para acalmar as tensões entre Norte e Sul. Como os estados não confiavam uns nos outros em decorrência das polêmicas em torno da escravidão, foi estabelecido o sistema indireto com número de votos pré-definido para cada colégio eleitoral. 👇🏾
Ademais, foi estabelecido que cada ente federativo é responsável por definir as suas próprias regras específicas de votação: ou seja, não há competência federal para uniformizar o processo eleitoral.

O paradoxo república-escravidão foi resolvido, pendendo para a escravidão.👇🏾
Em termos representativos, o Sul sairia vitorioso, na medida em que até a Guerra Civil (1861-1865), mesmo não tratando boa parte dos seus habitantes como humanos, os escravos contavam como 3/5. Após 1865, com a abolição da escravidão, essa vantagem representativa se acentuaria.👇🏾
Como coloca A. Keyssar, o racismo não está só na origem do sistema eleitoral, mas também na sua perpetuação contemporânea, na medida em que continua a dar mais peso aos estados sulistas, derrotados em 1865 e com peso demográfico menor. 👇🏾

valor.globo.com/mundo/noticia/…
Dentro de um contexto mais amplo, significa uma das engranegens de um sistema político que legitima o supremacismo branco e nega a possibilidade de democracia para os negros. Tais regras estaduais serviram, no passado, para impedir os negros de votar durante o Jim Crow, (...) 👇🏾
quando a eles eram exigidos, de maneira discricionária, requisitos absurdos, os quais não eram cobrados dos brancos. Serve hoje para negar eternamente o direito ao voto a uma imensa parcela da população negra que teve passagem pelo sistema penal. 👇🏾

oglobo.globo.com/mundo/quase-52…
Portanto, quando você escutar dos analistas políticos que a forma do sistema eleitoral estadunidense é para evitar a eleição de demagogos, populistas e bufões de toda ordem, saiba que isso é uma grande mentira.

É um sistema que nasce e se perpetua para negar a democracia.

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a. Demografia.

Diante do extermínio indígena, que reduziu drasticamente a população nativa, a colonização portuguesa da América se faz por meio de um repovoamento africano. Os números são impressionantes e dão a escala do fenômeno, muitas vezes não dimensionado por nós. 👇🏾
Como aponta @alencastro_f, de cada 100 pessoas que chegavam no Brasil até 1850, 87 delas vinham nos porões de navios negreiros (!!).

Dos cerca de 12 milhões de africanos transportados forçadamente para a América, 45% tinham como destino o Brasil (aproximadamente 5 milhões). 👇🏾
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Meu amigo, é muito apego à "razão" em uma plantation.
Quem já foi meu orientando, sabe da famosa página 129:

"Afinal de contas, não pode haver nenhuma reciprocidade na plantation fora das possibilidades de rebelião e suicídio, fuga e luto silencioso, e certamente não há nenhuma unidade de discurso para mediar a razão comunicativa."
"Política racional" é lidar com a radicalidade da nossa materialidade histórica. Do genocídio interminável. De corpos empilhados que não valem nada. Ver razão nos pactos de sangue. O resto é conversa fiada. Papo para boi dormir. Passaporte para você se sentir culto no necrotério.
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28 Aug
Jorge Ben, a Geração dos 90 e a democracia musical brasileira

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Segue uma thread sonora para embalar sua sexta! 👇🏾❤️
Como Gil fala: Ben é um estuário.

Influenciado pelas marés, é zona de extrema produtividade e criação, rico em elementos, nutrientes e potencialidades. Sua música é isso: um constante processo de invenção e reinvenção de nós mesmo. Mas Ben também é um estuário temporal. 👇🏾
Estuário temporal pois entrelaça os fios do passado e do futuro. Ele é o início, o fim e o meio.

Olhando para trás, Ben e caixa de reverberação das duas grandes Áfricas que aportaram no Brasil: a do Golfo da Guiné (cantos, imaginário e melodias) e Bantu (ritmação e devires).👇🏾
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