Liberalismo e falsificação da história

Venho defendendo faz um tempo que o liberalismo mente e falsifica sua história por ter como princípio de legitimidade não o que oferece, mas um terrorismo psicológico permanente. Basicamente, hoje, o liberalismo não oferece perspectiva de +
futuro, melhoras socioeconômicas e avanço civilizatório. Logo, necessita se legitimar afirmando que toda e qualquer alternativa é um inferno na Terra, um reino de totalitarismo, terror, miséria e fome. É a lógica simples estilo +
“sua vida não é boa, mas me abandonando, pode piorar”. É a “filosofia” neoliberal do “não há alternativa” no nível psicossocial

Para amparar esse terrorismo psicológico, é necessário apresentar o liberalismo como um reino de democracia, direitos humanos e liberdades individuais+
. Nessa operação, alguns mais ousados chegam no limite de separar completamente o que chamam de “liberalismo político” e “liberalismo econômico”, fazendo uma crítica tópica do segundo e uma apologia falsificadora da história do primeiro.
Um belo exemplo disso é o vídeo recente do liberal Henry Bugalho – uma falsificação pura do começo ao fim da história do liberalismo. Primeiro, ele MENTE ao explicar o medo do que o liberalismo chama de “tirania das maiorias”. Oferece um exemplo absurdo dizendo que se a massa +
quiser linchar uma pessoa que cometeu um crime, isso é democracia em estado puro, e a constitucionalidade liberal e a estrutura jurídica-burguesa contra as “maiorias” servem para impedir atos como esse.

Quem estudou um pouco o tema sabe bem que o principal medo dos liberais +
era o ataque dos sem-propriedade aos proprietários, o uso do poder político para alterar a estrutura de propriedade e riqueza. E não precisa estudar Domenico Losurdo – como o seu Democracia ou Bonapartismo – para saber disso. É pão comido esse debate, e ele pode ser achado tanto+
nos autores liberais lidos diretamente até qualquer livro bom de história da democracia. Exemplo básico: só a partir da segunda metade do século XIX é que as restrições censitárias ao voto começaram a ser derrubadas e os trabalhadores/as passaram a ter o direito de votar e +
ser eleito na Europa Ocidental. Restrição censitária ao voto significa, basicamente, que o direito ao voto estava submetido ao seu nível de riqueza e propriedade, como forma de garantir que os sem propriedade não tivessem acesso ao poder político +
Um liberal qualificado, como José Guilherme Merquior, reconhece e debate isso sem problemas no seu livro sobre a história do liberalismo (O liberalismo: antigo e moderno).

Aliás, na própria Inglaterra, berço de nascimento do liberalismo, o voto plural +
(alguns, considerados melhores entre o povo, tinham direito a seu voto valendo mais que um) só foi extinto no século XX. Aliado a isso, existe na fala de Henry uma idealização do Estado de Direito como elemento de legalidade e procedimentos regulamentados na punição. Nesse caso +
ele trata como se fosse parte desde sempre da democracia burguesa o princípio da inocência e devido processo legal. Isso não é falso no sentido que, na prática, esse princípio não se realiza para as classes populares. Trata-se de algo mais grave que isso: +
o princípio da presunção de inocência e do devido processo legal para todos, no plano jurídico formal, também foi uma imposição do movimento operário e popular ao liberalismo que lutou duramente contra o que Marx chamou (n'O Capital) de “leis sanguinárias” e +
práticas de deportação em massa, sem qualquer processo, de sindicalistas e militantes para as colônias. Na dúvida, leiam o Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX), de Dario Melossi e Massimo Pavarini +
Ainda na esteira de falsificação da história do liberalismo, buscando separar a “economia” da “política”, o autor do vídeo faz uma apologia do liberalismo como “proteção de minorias”. Nada mais falso. Basta citar, por exemplo, que Henry faz uma citação dos Pais Fundadores +
Oras, os país fundadores dos Estados Unidos defendiam o extermínio dos povos originários e a escravidão. Na prática, os EUA se configuraram, desde sua gênese até hoje, como um Estado racial, uma etnocracia burguesa (maiores informações, ler o livro Raça, Classe e Revolução) +
O mesmo exemplo pode ser estendido aos montes desde o plano teórico – com John Locke defendendo a escravidão – até o plano prático-político, como o comportamento de estados liberais como Inglaterra e Bélgica. A falsificação histórica de Henry me lembrou a resposta que +
Palmiro Togliatti deu a Norberto Bobbio,

“Mas quando, e em que medida, foram aplicadas aos povos coloniais os princípios liberais nos quais se disse fundado o Estado inglês do século XIX, modelo, creio, de regime liberal perfeito para aqueles que pensam como Bobbio? +
A verdade é que a doutrina liberal […] fundamenta-se numa bárbara discriminação entre as criaturas humanas. Além das colônias, tal discriminação se alastra também na própria metrópole capitalista, como demonstra o caso dos negros estadunidenses +
em grande parte desprovidos de direitos elementares, discriminados e perseguidos.”

O nível de falsificação da história é tão grande que o nosso colega cita o primeiro artigo Declaração Universal dos Direitos Humanos e diz que o documento é essencialmente liberal, no sentido de+
John Locke e Thomas Hobbes. Mais falso impossível. Ele esqueceu, por exemplo, as simpatias de Locke e Hobbes pela escravidão e seu "universalismo" restrito e que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, rompendo com a longa história da tradição liberal, afirma +
um universalismo acima de diferenças de gênero, raça, nacionalidade e classe, SÓ DEPOIS da vitória soviética sobre o nazifascismo, como imposição da nova correlação de forças no mundo. Como eu sempre gosto de lembrar, a Declaração afirmou que o racismo é algo negativo e que +
deveria ser combatido – enquanto os EUA tinham um regime de apartheid interno etc. -, mas isso aconteceu muitos anos depois da União Soviética que na sua constituição de 1936 criminaliza o racismo e negativar toda expressão de supremacismo racial.
O que Henry faz, basicamente, é apagar da história que o que chamamos hoje de democracia política(burguesa), direitos civis, liberais individuais e garantias legais com universalismo jurídico-formal foram uma IMPOSIÇÃO da tradição democrático-radical, que tem sua primeira grande+
expressão com o jacobinismo francês e a Revolução Haitiana e ganhou continuidade e desenvolvimento com o movimento operário e popular e o ciclo histórico aberto com a Revolução de Outubro. Para maiores dúvidas, para começar um bom estudo sobre o tema +
os livros Os jacobinos negros de C. L. R. James e Hegel e o Haiti de Susan Buck-Morss.

Por fim, não é coincidência que no final do vídeo, Henry recomende o livro (péssimo) “O povo contra a democracia”, de Yascha Mounk.
Mounk, para quem não sabe, apoiou o golpe na Bolívia e chamou as milícias racistas de extrema-direita de “reação popular democrática”. Entendeu o jogo, não é?! Pois então!
O cara recebe um texto teórico, com vários livros citados onde ele pode contestar ou não os argumentos, e se diz perseguido, apela para espantalho de totalitarismo, fala em tática MBL e "treta".

Não aguenta cinco minutos de debate teórico com referências e fora do senso comum!

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6 Nov
Uma parte da esquerda brasileira não marxista se comporta segundo o bordão de Margaret Thatcher: "não há alternativa". Não pensam em como mudar a correção de forças, abrir novas possibilidades de ação, transformações estruturais, reformas profundas (para não falar de revolução).
Atuam com base em um terrorismo psicológico tacanho. A ideia é sempre baixar as bandeiras, rebaixar o programa, suavizar o discursos, ampliar a direita as alianças, assumir cada vez mais elementos das políticas de direita e tudo isso justificado na ideia de evitar mal maior.
Não tem problema nenhum, em DETERMINADOS MOMENTOS, atuar na perspectiva de reduzir danos. Recuo tático faz parte da arte da guerra e da política. O problema é que para essas pessoas, isso não é recuo tático, mas a forma estratégica de fazer política. Rebaixar e recuar sempre!
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5 Nov
Informe.

Ninguém tá cobrando se assumir comunista ou ler Marx. Mas dizer que países como China e Vietnã tiveram o sucesso no combate ao covid por causa de "autoritarismo" é legitimar o neoliberalismo e o liberalismo econômico, ajudando, inclusive, a fortalecer opiniões anti-SUS.
Acompanha! Ao invés de pensarmos os impactos de mais de 30 anos de neoliberalismo no mundo e toda destruição da saúde, condições sanitárias, moradia, senso de coletividade e responsabilidade social, planejamento público e afins, falamos que não deu certo porque somos democráticos
É como falar: a política econômica das últimas décadas não é determinante na hora de reagir ao covid. Determinante é o suposto nível de "liberdade individual" e "controle autoritário" do estado.

Percebeu como isso deixa na sombra o fato de que, por exemplo, enquanto a China +
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4 Nov
É um FALSO DEBATE esse negócio de se Biden é igual a Trump. O debate real é: como foram criadas as condições para o fortalecimento global da extrema direita.

Aqui vai uma dica importante: onda de ações neocoloniais no Norte da África e Oriente Médio (vide Líbia, 2011);
apoio aos grupos de extrema direita no Leste Europeu. Vide o caso da Ucrânia, em 2014; onda global de austeridade e destruição das condições de vida da classe trabalhadora; onda de golpes e cartada militar na América Latina (vide Lugo, no Paraguai, 2012);
aposta na política externa de "estados falidos" criando brechas de poder e espaço para surgimento de coisas o Daesh.

Nada disso foi com Trump, mas com Obama e Biden vice do Partido Democrata (PD). Agora, é lógico, que o PD vai tentar até certo ponto colocar o gênio na garrafa.
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4 Nov
Nos anos 60 e 70, várias comunidades chamadas genericamente de "latinas" se organizaram e tinham um programa antirracista radical e socialista. O que aconteceu com elas? Foram, basicamente, paradas na base da bala e cadeia.

É preciso ter cuidado com falas sobre "latinos" sem+
consciência de classe e que votam em Trump. Caso contrário, estamos, querendo ou não, legitimando todo o processo de brutal repressão política dos anos 60 e 70 e que foi continuado na forma de "guerra às drogas" e a ideologia da "tolerância zero" com o "crime".
É fundamental lembrar também que a MAIORIA das lideranças "latinas" e negras nos EUA foi assassinada ou presa em processos totalmente ilegais - e outros tiveram que fugir dos EUA e até hoje não podem voltar para o país. E isso não é passado. É profundamente atual!
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2 Nov
Sobre a matéria do El País e a necessidade de honestidade.

Como sabem, no último sábado, o El País soltou uma matéria de ataque contra mim assinado por Felipe Betim e Flávia Marreiro. O professor Safatle já informou em suas redes que foi consultado para uma matéria sobre+
radicalização da esquerda, não sendo informando que seria um material destinado a me atacar e repudiou a atitude dos jornalistas.

Mas não é só isso. O Felipe Betim me mandou essas perguntas. Como podem ver, as perguntas são todas enviesadas, preconceituosas +
anticomunistas com leves toques reacionários e cheias de cascas de banana.

Respondi educadamente perguntando se minhas respostas seriam publicadas na íntegra. Betim respondeu que as respostas não seriam publicadas na íntegra +
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1 Nov
Desesperados e canalhas

Foram atrás de um vídeo de Boulos de 2014. No vídeo, Boulos explica o que entende por poder popular e cita como exemplo o processo de auto organização nas ocupações do MTST. Boulos descreve como em caso de conflitos, como violência doméstica, a ocupação+
cria mecanismos de resolução de conflitos, combate ao machismo, defesa da mulher etc. Cita que evitam chamar a PM nesses casos. Boulos estava falando da situação específica de um OCUPAÇÃO que é brutalmente criminalizada pelo poder público e a polícia.
Eu já visitei várias ocupações do MTST e ajudei o movimento a ocupar um terreno em Recife. Vi com meus olhos a PM intimidar os trabalhadores, fazer baculejo por nada contra jovens, fazer batida atrás de drogas - querendo plantar drogas - para criminalizar toda ocupação.
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