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1 Jan, 133 tweets, 24 min read
Uma perguntas estranha que me empolgou muito:

A gente conseguiria se comunicar vivesse em um mundo com só uma ou duas dimensões espaciais?

Spoiler: provavelmente não

#FísicaThreadBR (pela Física)
#MatThreadBR (pelas técnicas)
#FisMatThreadBR (pq já era hora)
Ao longo dessa discussão, que é bastante baseada em (Balakrishnan, 2004), eu vou ir deixando umas referências. Ao final da thread eu ponho a bibliografia
Brincar com a ideia de como seria viver em um mundo com menos dimensões não é tão raro assim. Um livro famoso que se delicia nisso é o Flatland: A Romance of Many Dimensions [Planolândia: Um Romance de Várias Dimensões], do Edwin Abbott, que acompanha as aventuras de um quadrado+
através de mundos com várias dimensões diferentes. O Hawking também comenta um pouco no Uma Breve História do Tempo, e meio que estraga a brincadeira falando "Bem, seria difícil ter um sistema digestivo em duas dimensões sem te dividir em dois"
Isso responde minha pergunta de um jeito meio chato: a gente não conseguiria se comunicar, porque não teria como viver.

Não sei vocês, mas essa resposta pra mim é meio chata. Ela pode ser cheia de lógica, mas é vazia de alma. Vamos ousar um pouco mais...
Pela diversão (eu só acredito em fazer Física se for pra se divertir), vamos fingir que de alguma forma seja possível ter organismos complexos em 1D ou 2D. Eles conseguem se comunicar?
Pra dar sentido a essa pergunta, a gente precisa primeiro entender que diabos eu quero dizer com se comunicar. Como dá pra modelar comunicação?
A gente se comunica de várias formas diferentes. Por exemplo, por som: se eu dou um berro da minha casa, eu posso me comunicar com alguém que tá do outro lado da rua
Língua de sinais é outra opção. Posicionando suas mãos de um jeito ou de outro, você pode usar a luz pra transmitir informação pra outra pessoa: ela vê suas mãos e entende o que você quer dizer
Hoje em dia também usamos muito ondas eletromagnéticas. Você tá lendo esses tweets porque tem uma porção de máquinhas entre nós dois transmitindo sinais eletromagnéticos de um ponto pro outro e convertendo os sinais em outras coisas
Todos esses modelos que eu propûs tem uma coisa em comum: eles se baseiam em ondas. O som é uma onda mecânica, nada mais do que vibrações do ar sendo transmitidas por uma partícula batendo na outra. Luz é uma onda eletromagnética, que vibra não partículas, mas um campo abstrato
Mas isso não é suficiente pra ter comunicação. Você precisa que a onda se comporte de um jeito bonitinho

Por exemplo, se eu grito "TACA A MÃE PRA VER SE QUICA", eu gostaria que você escutasse a mesma coisa
Em palavras um pouco mais chiques, se eu emitir um sinal delicado, eu gostaria que ele fosse transmitido até você sem deformação, sem eco, essas coisas

Seria complicado de me enender se o "TA" chegasse em você e não fosse embora
Legal. Como a gente pode modelar isso?
Vamos começar falando de ondas livres, e mais tarde a gene aprende a gritar

Ondas livres respeitam essa equação aqui, que a gente chama de equação de onda homogênea
Vamos entender o que quer dizer cada termo disso aí. Pra começar, o que é esse u?

É uma função do tempo e do espaço, u(t,x) (em 1D). Ele descreve a intensidade da onda naquele lugar, naquele instante
Poderia ser algo assim, por exemplo. Na horizontal você tem o eixo x, na vertical é o u, e o tempo vai passando com o gif
E as outras coisas na equação? O que elas são?

O triângulo ao quadrado é o que a gente chama de Laplaciano. Ele mede a curvatura da parte espacial da função em várias dimensões

Tá, isso é meio complicado, né? Vamo ver um exemplo
Em uma dimensão, o laplaciano se reduz a uma derivada segunda, d^2/dx^2, e a equação vira isso aqui
Por que eu decidi mostrar o caso 1D? Porque é mais fácil ver a função se curvando

Quando a função tá triste (azul), a derivada segunda tá negativa. Quanto a função tá feliz e sorrindo (vermelho), a derivada segunda tá positiva

Sim, eu lembro desse jeito
O d^2/dt^2 funciona do mesmo jeito, mas é pro tempo. O c é a velocidade da onda (no caso de onda eletromagnética, é a velocidade da luz)
Pra entender o que a equação significa, é útil fazer uma peripécia que funciona pros físicos, mas os matemáticos podem não gostar. Vamo fingir que dá pra usar diferença de quadrados na equação e fazer ela virar isso aqui
Pensando desse jeito, ou o primeiro termo precisa dar zero, ou o segundo. Então a equação de onda vai ser respeitada se valer isso aqui
Depois que você escolhe um sinal, essa é a chamada equação de transporte. Os d/dx e coisas assim representam a inclinação da função (com relação ao espaço e com relação ao tempo)
Naturalmente, eu não tô sendo muito rigoroso aqui porque isso é uma thread de divulgação, mas quem quiser brincar mais a fundo pode usar a regra da cadeia e trocar de variável de x e t pra a = x + ct e b = x - ct e chegar nas mesmas conclusões que eu vou chegar
Vamos escolher o sinal de + (o de - funciona igual). A equação vira
Se a função tá inclinada pra cima no espaço, ela tá inclinada pra baixo no tempo: pontos que tão inclinados pra cima no espaço vão descer conforme o tempo passa, e vice-versa

Dá pra desenhar assim
Em vermelho é a função em um instante. Em azul, é um pouquinho depois. A equação faz com que o formato se mantenha, mas se mexa um pouquinho pro lado
As setas não encaixam certinho nas curvas pq eu fiz tudo no olhômetro e isso é só uma ilustração intuitiva, não um argumento rigoroso (mas dá pra fazer bonitinho tbm)
Se a gente tivesse escolhido o outro sinal, ia ser a mesma história, mas se mexendo pra esquerda ao invés da direita
Ou seja, a equação de ondas livres em uma dimensão faz o desenho ir se mexendo pra direita ou pra esquerda, sem mudar o formato

Igual o gif que eu tinha mostrado
Não vou falar muito de ondas livres em mais dimensões, mas vale mencionar que nelas a onda vai diminuindo conforme ela propaga, mas isso é por conservação de energia
Se eu solto um pulso em 1D, ele vai pros dois lados e pronto. Em 2D, ele vai crescer em círculos. Como o círculo fica com perímetro cada vez maior, a energia vai sendo dividida entre os pedaços do círculo e cada cantinho vai ficando mais baixo
Por isso que é difícil você ouvir alguém gritando de longe. Em três dimensões, é uma esfera, então tem que dividir em ainda mais pedaços. A intensidade do som cai com a distância da fonte ao quadrado
Mas chega de ondas livres. Isso é divertido, mas ondas livres seriam como sons que sempre existiram e tão caminhando pelo universo. Eu tô curioso pra saber sobre como eu descrevo um berro que eu dei
Quando você dá um berro, o que você tá fazendo é ligando uma fonte de ondas. A gente vai precisar adicionar isso na equação
Ela fica assim. É o que a gente chama de equação de onda inomogênea ou não-homogênea (a homogênea é a de onda livre)
Esse phi (ϕ) representa o seu grito. Ele é uma função do tempo e do espaço que representa o seu grito. Por exemplo, se você fica quieto, grita do nada, e depois fica quieto de novo, ela pode parecer com isso aqui
Um fus ro dah começa ficando mais alto aos pouquinhos (fus), tem uma pequena pausa e aí vem um grito alto (ro) e um grito ainda mais alto (dah). Poderia parecer com isso
O eixo horizontal nesses gifs é o espaço. O pedacinho em que o grito aparece é a sua boca: o som não tá saindo de um ponto só, tá saindo de uma região
Como vocês podem perceber, tem vários possíveis gritos diferentes. A gente vai ter que resolver a equação pra cada um deles?
Por sorte, não. A gente consegue decompor qualquer grito em uma soma de gritos extremamente altos que aconteceram num único instante e num único local
Na prática, basta resolver essa equação aqui e todas as outras seguem
Esses símbolos no final representam o grito super alto num instante específico e num lugar específico. Isso é bem diferente do grito da sua boca, que ocorre ao longo de um tempo e numa região, não num ponto só
O G, que é a solução da equação de onda pra esse grito alto, é o que a gente chama de função de Green. Ela é a grande estrela de hoje
Resolver essa equação é um trabalho meio chatinho, mas factível. Nos casos que a gente tá interessado, dá pra achar a solução em livros e coisas assim (Balakrishnan, 2004; Braga, 2006; Couto, 2013), então eu vou só pegar elas prontas
Não foi erro de digitação: é elas mesmo. A solução muda dependendo de quantas dimensões espaciais você tem, e é a partir de agora que a criança chora e a mãe não vê
Vamos começar com 3 dimensões, que é o mundo como a gene conhece. A solução é essa aqui. t é o tempo, r é a distância até a fonte do barulho e c é a velocidade de propagação do som
O sinal negativo é só uma convenção, dá pra ignorar ele

O 4\pi r é interessante. 4\pi é a área de uma esfera com raio 1 em 3D, e tá aí por conta disso +
É uma normalização. O r é aquele efeio da energia ser dividida entre os pedaços da esfera: quanto mais longe você tá da fonte, mais fraco é o som que você escuta

O outro símbolo, que a gente chama de delta de Dirac, é o que a gente tinha usando no grito. Ele tá falando que
quem tá a uma distância r da origem, vai ouvir um barulho quando t = r/c (o delta dá super alto quando o argumento dele é 0 e dá 0 caso contrário. Por isso a gente usou ele pro grito alto). Pq t = r/c? Pq é o tempo que um sinal com velocidade c demora pra andar uma distância r
A solução em três dimensões parece mais ou menos isso daqui. A horizontal representa distância até a fonte (os dois lados são a mesma coisa)

Isso é só uma ilustração. Essa delta na verdade é uma coisa meio esquisita, mas vocês pegaram a ideia geral
Tem um barulho na origem no instante 0. Demora um tempinho pra ele chegar até cada pessoa, e isso depende da distância. Ele chega, você escuta, e não se fala mais nisso. Vai embora. Além disso, quanto mais longe você tá, mais baixo o som
Em uma dimensão, a função de Green parece com isso aqui
Esse H é a chamada função degrau de Heaviside: se x <0, H(x) = 0. Se x > 0, H(x) = 1 (o caso x=0 geralmente não importa por umas noções um pouco mais técnicas)
2 é a superfície da esfera em uma dimensão, então esse 2 dividindo é só a nova aparência do 4\pi de antes. O sinal de menos ainda é só uma convenção (que eu desprezei no outro gráfico e vou continuar desprezando aushausha). O c que apareceu na frente tbm tinha no 3D, mas ele
tinha se escondido no delta de Dirac

A graça dessa nova solução é que ele não tem o fator de r no denominador e trocou o delta de Dirac por um degrau de Heaviside
O delta de Dirac dava um pico super alto só quanto t = r/c, que é o exato instante que a onda chega em você. Agora, o Heaviside tá deixando uma marca pra todo t >= r/c
O gráfico ficou assim
Boa sorte se comunicando em uma dimensão! Se você grita "PALMEIRAS NÃO TEM MUNDIAL" pra alguém, a pessoa vai ouvir o "PA" e continuar ouvindo por toda a eternidade. O som nunca vai embora!
Mais do que isso, ele não enfraquece com distância. Não adianta falar baixo na biblioteca pq mais cedo ou mais tarde todo mundo vai te ouvir com o mesmo volume não importa onde eles estejam
E claro, você ainda estar ouvindo o barulho do asteroide que se chocou com a Terra exterminando os dinossauros enquanto tenta se concentrar na biblioteca, porque o som nunca vai embora
Percebeu que eu tô falando bastante de som e não dei nenhum exemplo com luz? É pq em 1D não existe onda eletromagnética (McDonald, 2019), então não tem como a luz se propagar

Não sei se vou falar muito disso hj, mas fica a dica pra me cobrar depois
Ok, o mundo seria um inferno escuro e barulhento se a gente vivesse em 1D. Que tal 2D?
Apresento a vocês a função de Green da eq de onda em 2D (AKA o caso mais chato de calcular dos três)
2\pi é a superfície da esfera de raio 1 em duas dimensões (perímetro do círculo). Temos o sinal de menos de sempre, umk degrau de Heaviside (oh no) e agora tem esse novo fator no denominador
Esse carinha no denominador se comporta que nem o r da solução 3D: conforme a onda se espalha, a conservação de energia exige que ela vá abaixando
Aqui a animação (eu dei uma trapaceadinha equivalente à do caso 3D, mas comento sobre isso depois)
Assim como o caso 3D, a gente vê as soluções caindo com a distância. Porém, assim como no caso 1D, a gente vê que depois que o som chegou em você, ele ainda deixa um eco pra trás. No 3D, você ouve e acabou. Aqui, você ouve e fica um ruído de fundo
Em 2D você também não consegue se comunicar bem. Sinais delicados vão ser alterados e deixar esse rastro estranho, e isso naturalmente vai persistir também pra sinais mais complicados
Eu mencionei de passagem que em 1D você não tem ondas eletromagnéticas. Antes de ir pro caso genérico de um mundo com d dimensões espaciais, eu vou me dar o prazer de brincar com Eletrodinâmica 2D aqui também
Em 2D, você consegue ter ondas eletromagnéticas (McDonald, 2019; Boito et al., 2020), mas o potencial elétrico fica diferente. Pra uma carga pontual parada, ao invés dele cair com 1/r, ele cresce com log(r) (Boito et al., 2020)
Isso significa que o elétron do átomo de hidrogênio passa a ser confinado (Boito et al., 2020). Em 3D, você consegue arrancar um elétron de um átomo de hidrogênio se colocar energia suficiente. Em 2D, esquece. Você precisaria de energia infinita
Por conta disso, flatland provavelmente tem uma Química que funciona de um jeito muito diferente do que a gente tá acostumado
Vimos os casos em dimensão 1, 2 e 3. O que aconteceria então se a gente quisesse tentar olhar pra dimensões maiores?
Calcular as funções de Green é algo razoavelmente complicado. Se você acompanhou meu Twitter essa última semana, pode ter me visto reclamando de quando eu tava calculando o caso 2D (que é o mais difícil dos três)

Porém, fazendo uns truques com umas noções emprestadas de Relatividade Restrita (essencialmente, mudando de referencial pra um que a conta fique mais fácil), você consegue chegar numa expressão que dá a cara geral das funções de Green (Balakrishnan, 2004)
Com isso eu quero dizer que você pode até não ter completado todos os detalhes do cálculo, mas dá pra ver que um dos termos vai dar ou uma delta de Dirac, ou uma função extensa, como o degrau de Heaviside
Isso é quase por uma coinciência. Se d > 3 é ímpar, você consegue fazer um macete que dá um delta de Dirac. Se d > 3 é par, o macete não funciona e você fica preso com uma função extensa (Balakrishnan, 2004)
Pros que entendem os termos técnicos: você cai numa integral em k (norma da variável conjugada a Fourier da posição) ao longo da conta. Pra d > 3 ímpar, o integrando é par e você pode fazer a integral sobre a reta e arrancar uma representação integral da delta. Pra d > 3 par,
o integrando é ímpar e você fica preso a fazer a integral só na semirreta positiva, o que acaba resultando numa função extensa (Balakrishnan, 2004)
Por conta disso, em número par de dimensões espaciais a comunicação fica extremamente complicada porque o degrau de Heaviside vai deixar tudo embaçado. Você fala uma coisa e fica um eco no mundo, e os sinais delicados que gostaria de transmitir ficam distorcidos
E as dimensões ímpares? Tem alguma coisa interessante nelas?
Entre outras coisas, Paul Ehrenfest usou as ideias de Eletrodinâmica em d dimensões pra argumentar por que o Universo tem 3 dimensões espaciais (Ehrenfest, 1917).
O potencial elétrico em 3, 5 e 7 dimensões espaciais tem essas caras aqui (Ehrenfest, 1917)
Não se preocupa com os detalhes. O rho (esse p esquisito) é a densidade de carga, e colocar um pontinho em cima significa tomar uma derivada temporal. \rho ponto é como se fosse a velocidade das cargas, \rho dois pontos a aceleração, etc
Esses colchetes significam que você precisa avaliar no tempo retardado, ou seja, em t - r/c. Demora um tempo pra informação se propagar. O símbolo estranho que parece um peixinho quer dizer "proporcional", pq eu tô ignorando umas constantes que deviam aparecer aí =P
Quando você tá muito longe das cargas, você só precisa se impotar com o termo que tiver menos r no denominador: se r = 1000, por exemplo, 1/r^5 = 10^-15, enquanto 1/r^4 = 10^-12, que é bem maior. Porém, em d>3, quanto menos r, mais pontos
Como o \rho é uma distribuição de carga, se ele for muio concentrado (como um elétron), os \rho pontos vão ser bem grandes se a carga estiver se movendo, e o movimento de um elétron ia causar um campo extremamente forte a longas distâncias (Ehrenfest, 1917)
Isso mostra um comportamento um tanto distinto do caso 3D. Em 3D, você também tem esse efeito das velocidades e acelerações gerarem campos mais intensos a longas distâncias, mas eu entendo o ponto do Ehrenfest como sendo "Isso agora tá BEM mais acentuado"
Você pode estar olhando pra esse argumento e falando*: "Tá, e daí?"

*pode não estar tbm, mas eu estou
Numa das primeiras aulas de Relatividade Geral do Frederic Schuller, que estão disponíveis no YouTube, eu lembro (e aqui vou falar anedoticamente) que ele cita Maquiavel dizendo: "Você deve fazer as coisas cruéis no começo"

Como podem ver, eu não aprendi essa lição ainda
Se eu contei certo, essa thread já deu mais de 90 tweets, mas só agora, depois de ter tentado conquistar você com a beleza e graciosidade dessas ideias, eu venho perguntar: faz sentido a gente tentar prever um mundo que não seja tridimensional?
O Ehrenfest abre o artigo dele falando assim:

"'Por que nosso espaço tem três dimensões?' ou em outras palavras: 'Quais características singulares a geomeria e a física possuem no IR³ que as distingue daquelas nos demais IRn?' Quando postas desta forma as questões talvez +
não façam sentido. Certamente elas são expostas a criticismo justificado. Pois 'existe' espaço? É ele tridimensional? E então a pergunta 'por que'! O que se quer dizer por 'física' em IR⁴ ou IR⁷?

Não tentarei encontrar uma melhor forma para estas questões. Talvez outros +
sejam bem sucedidos em encontrar mais algumas propriedades singulares de IR³, e então se tornará claro para quais perguntas 'justificadas' as nossas considerações são respostas adequadas."
Isso ajuda a perceber que ainda tem muitas pontas soltas nessa história...

Vamos começar falando desse argumento do próprio Ehrenfest, que é mais próximo da pergunta "Pq o Universo tem três dimensões espaciais?"
Antes de mais nada, o argumento já é problemático por ignorar Relatividade (Callender, 2005): seria mais adequado perguntar por que o espaço-tempo tem quatro dimensões
Além disso, a gente tá colocando duas perguntas em uma. Mais apropriado seria (Callender, 2005)

1. Quantas dimensões tem o Universo?
2. Por que esse número?
Nem sempre a resposta da questão 1 vai ser o 3+1 que a gente espera, e dependendo do contexto (e.g. Teoria de Cordas) você pode ter razões pra querer considerar 10 ou 11 dimensões (Callender, 2005)
Mais do que isso, o argumento do Ehrenfest me parece meio circular. Você quer responder "Por que o Universo é espacialmente 3D?" e fala "Ah, em 7D teria forças bem mais inensas"

E daí?
Se o seu ponto é que a gente não observa essas forças, voltamos à estaca zero: eu já tô assumindo com você que o espaço é 3D, e você tá me dizendo que se fosse 7D não seria 3D
Se o seu ponto é que essas forças não permitiriam existência de vida ou algo assim, voltamos pro começo da thread: não quero saber se pode existir vida. Eu quero saber por que o Universo tem tantas dimensões quanto tem
Me parece com o argumento comum de estabilidade dos planetas(Callender, 2005): por que os planetas precisam ser estáveis? O Universo não poderia existir sem os seres humanos?
Caminhando de volta pra divertida análise sobre comunicações, tem outras coisas a serem levadas em conta
Primeiro eu vou falar de Eletrodinâmica. A gente conhece Eletrodinâmica em 3D, mas não tem como saber como ela seria em outros números de dimensões
Tem mais de um jeito de estender a teoria, seja pra um universo com mais dimensões (Callender, 2005) ou pra um com menos (McDonald, 2019)
A Eletrodinâmica que eu me baseei em d = 2, por exemplo, foi "Pega Eletrodinâmica 3D usual e considera o que acontece só no plano". As cargas pontuais 2D que eu usei podem ser entendidas como sendo só fios 3D (Boito et al., 2020)
Embora isso seja uma construção possível, não é a única. Essa construção preserva as Equações de Maxwell, que a gente vê como sendo as leis fundamentais do Eletromagnetismo. Porém, pode ser que as leis realmente fundamentais sejam os potenciais, e na verdade em todas as +
dimensões o \phi que o Ehrenfest calculou e eu coloquei uns tweets atrás seja o mesmo, sem aparecerem aqueles \rho pontos no meio
Naturalmente, isso se aplica tanto pra d < 3 quanto pra d > 3. O que nos garante que as conclusões que estamos tirando não mostram o espaço tridimensional como sendo especial só pq a gente já tá usando Física tridimensional desde o começo?
Mais do que isso, é justo a gente modelar essas comunicações usando a equação de onda? Existem outros fenômenos importantes que podem afetar o que tá acontecendo na teoria (Balakrishnan, 2004)
Um modelo pra estudo de transmissão de sinais em telégrafos, por exemplo, é dado por essa equação, chamada equação do telégrafo (Koshlyakov, 1964)
Ela parece com a equação de onda, mas tem esses termos extras no final. Eles correspondem ao fato de que o fio que transmite a informação do telégrafo esquenta e não é perfeitamente isolado
Pode ser que fazendo análises mais cuidadosas esses tipos de efeitos entrem em jogo e mudem essas histórias
Especialmente se considerarmos também que até agora as equações não tiveram nenhum termo como u^2 ou algo assim. A gente só lidou com equações lineares
Nessas brincadeiras de adicionar termos novos, você pode acabar chegando numa nova equação que tem soluções chamadas de sólitons: ondas solitárias, que podem aparecer mesmo em equações que não tinham nada a ver com ondas no começo da história
Eu gosto do jeito que o Balakrishnan encerra:

"Uma coisa parece certa, no entanto: é muito provável que, mais cedo ou mais tarde, nossas antigas ideias e pré-concepções sobre a natureza do espaço e do tempo precisarão ser significativamente revisadas no nível mais fundamental"
Bem, é aí que você entra
Pós-Thread (Uns comentários soltos e, daqui uns tweets, bibliografia)

Eu acabei falando menos de Matemática do que eu esperava. A delta de Dirac e as funções de Green são distribuições, não funções normais. A grosso modo, a delta não é só "muito alta", ela é infinita, e isso dá+
complicações pra entender o que a gente quer dizer com aquilo tudo e mesmo pra pensar até onde fazer sentido fazer esses gráficos
Os problemas com os gráficos 2D e 3D que eu mencionei eram exatamente esses, por sinal. Eu fiz eles de um jeito que dava finito pra ser mais pedagógico e fácil de visualizar
A rigor, eu deveria ter tido a vergonha na cara de resolver a equação pra um grito de gente, mas dá um desconto, eu tô escrevendo essa thread há umas 4h consecutivas poxa aushaushasuhas
Bibliografia

Eu vou tentar deixar em ordem alfabética, mas eu sou péssimo em ordenar as coisas por ordem alfabética, então peço perdão por qqr coisa. Se perceberem alguma referência que eu citei, mas não coloquei aqui, por favor me avisem
[1] Abbott, E. A. Flatland: A Romance of Many Dimensions
[2] Balakrishnan, V. Wave propagation: Odd is better, but three is best. Resonance 9, 30–38 (2004)
[3] Balakrishnan, V. Wave propagation: Odd is better, but three is best. Resonance 9, 8–17 (2004)
[4] Boito, D. et al. On Maxwell’s electrodynamics in two spatial dimensions. Revista Brasileira de Ensino de Física [online] 42, e20190323 (2020)
[5] Braga, C. L. R. Notas de Física-Matemática: Equações Diferenciais, Funções de Green e Distribuições (eds Wrezinski, W. F., Perez, J. F., Marchetti, D. H. U. & Barata, J. C. A.) (Ed. Livraria da Física, São Paulo, 2006)
[6] Callender, C. Answers in search of a question: ‘proofs’ of the tri-dimensionality of space. Studies in History and Philosophy of Modern Physics 36, 113–136 (2005)
[7] Couto, R. T. Green’s functions for the wave, Helmholtz and Poisson equations in a two-dimensional boundless domain. Revista Brasileira de Ensino de Física 35, 01–08 (2013)
[8] Ehrenfest, P. In what way does it become manifest in the fundamental laws of physics that space has three dimensions? Proceedings of the Amsterdam Academy 20, 200-209 (1917)
[9] Hawking, S. W. Uma Breve História do Tempo (Intrínseca, Rio de Janeiro, 2015)
[10] Koshlyakov, N. S., Smirnov, M. M. & Gliner, E. B. Differential Equations of Mathematical Physics (North-Holland, Amsterdam, 1964)
[11] McDonald, K. T. Electrodynamics in 1 and 2 spatial dimensions, disponível em physics.princeton.edu/~mcdonald/exam…
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