Diante dos debates desta última semana, é oportuno relembrarmos dos dissidentes tchecos do séc. XX e de sua noção de pólis paralela.

Tudo começou em janeiro de 1977, com a prisão de integrantes da banda Plastic People of the Universe.
Por causa dela, dissidentes publicaram um manifesto, a Carta 77, que acabaria por dar origem a um grupo de resistência com o mesmo nome.

Nos anos 70, o Estado tcheco passava por uma fase de aprofundamento do totalitarismo e da hiperburocratização.
O regime oferecia paz em troca da obediência passiva e aclamação da ortodoxia partidária, mas condenava ao ostracismo quem ousava questioná-la.

Muitos vivam uma vida dupla, apresentando-se como entusiastas do governo, ainda que, privadamente, estivessem descontentes.
Com acordo de Helsinki (1975), convenções internacionais de direitos civis haviam sido incorporados à legislação. Os signatários do manifesto pediam apenas que o governo não ignorasse as próprias leis.

Mas os dissidentes foram duramente perseguidos.
Entre eles, estavam o filósofo Jan Patocka, o dramaturgo Vaclav Havel e o matemático Vaclav Benda, três autores que, diante de suas circunstâncias, desenvolveram uma valiosa reflexão política.
Jan Patocka foi um dos principais líderes do Carta 77 em seu início.

Formado na fenomenologia de Husserl, diante da situação de seu país, elaborou uma filosofia da resistência na qual a verdade tornava-se um modo de vida.
Patocka, considerado o Sócrates eslavo, via a dissidência como a busca por manter a integridade da própria alma, mesmo em condições adversas.

Resistir ao totalitarismo era, antes de tudo, expeli-lo da alma, possível apenas em uma firme decisão de se permanecer na verdade.
Ele pagou caro por suas convicções.

Poucos meses após o manifesto, em março de 1977, depois de um duro interrogatório, faleceu em decorrência dos maus tratos.

Mas seu trabalho não foi em vão, pois se tornou um modelo para os outros.

Após muitos anos, a dissidência triunfou.
Em 1978, Vaclav Havel, que se tornaria presidente da Tchecoslováquia em 1989, escreveu seu ensaio O poder dos sem poder.

Ali, ele falava de uma política antipolítica, cuja essência, na esteira de Patocka, seria a permanência na verdade.
Ele dizia: o medo é o que faz com que a ideologia permaneça no poder.

Por causa do medo, passamos a viver na mentira, comprometendo nossa humanidade. Todo aquele que contradiz a ideologia paga por sua resistência.
Mas, ao testemunhar a verdade, o dissidente mostra que é possível nela viver.

Sua resistência pessoal torna-se ato político. Ao aceitar sofrer por suas convicções, ele se torna seu testemunho e preserva a sua humanidade, o que é mais importante que vencer o jogo do poder.
Ainda em 1977, outro dissidente, Vaclav Benda, escreveu o ensaio A pólis paralela.

Ali, ele afirma que o compromisso moral não é o suficiente.

O ser humano é um ser social. Assim, era necessário construir novas estruturas sociais, independentes e paralelas ao Estado.
Essa é a pólis paralela, um conjunto de estruturas sociais criadas à margem do totalitarismo para que uma existência verdadeiramente humana se tornasse novamente possível.

Uma vida paralela ao Estado nas artes, na cultura, em uma economia fundada nas relações pessoais.
Também na criação de uma educação paralela, de uma vida intelectual independente (a partir de seminários underground conduzidos por professores banidos do sistema) e na formação de redes confiáveis de informação.

E no suporte mútuo diante das necessidades da vida.
O regime totalitário tcheco caiu em 1989, com a Revolução de Veludo.

Mas as lições dos dissidentes não perderam sua importância. Elas não dizem apenas respeito à resistência ao autoritarismo, mas à vida política em si.
Hoje, mais do que nunca, diante de forças políticas econômicas grandes demais, penso a lição é clara:

a pólis paralela não é apenas uma forma de dissidência, mas a própria essência de uma política viva.

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13 Jan
Lendo o The Discarded Image de C. S. Lewis, me chamou a atenção a passagem na qual ele afirma que o universo medieval não era escuro, mas iluminado pelo Sol, e não era silencioso.

Ele tinha ali em mente a noção de musica universalis, a harmonia das esferas.
A ideia remonta, segundo as fontes antigas, a Pitágoras.

Plínio, o velho dizia que ele chamava a distância da Terra à Lua de tom, da Lua à Mercúrio de semitom (também a de Mercúrio a Vênus), de Vênus ao Sol de um tom e meio.
Ainda, do Sol à Marte de tom, de Marte à Júpiter de meio tom, de Ainda, de Júpiter à Saturno de meio tom e de Saturno ao Zodíaco de um tom e meio.

No total, sete tons inteiros, que os pitagóricos consideravam ser a harmonia universal.
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