Ficar ou Não Ficar em Casa? (Abstinência Total ou Redução de Dano)
Quantas vezes você já se pegou com raiva de quem faz aglomeração? Se pegou xingando ao ver uma reportagem de uma festinha clandestina ou mesmo cancelou a Pugliesi?
Desde o começo da pandemia, o discurso se voltou para a responsabilidade individual e como a "sua diversão" pode "matar alguém". Todos deveriam ficar em casa. Era um esforço coletivo, um esforço de guerra, que todos deveriam cumprir, sem excessão.
Inicialmente, não foi oferecida uma alternativa. Caminhar sozinho na praia? Não pode. Visitar alguém que precisa de ajuda? Não pode. Garantir seu próprio sustento? Não pode. Só pode ficar em casa.
Houve uma inversão da responsabilidade. O foco deixou de ser no Estado, instituição que deveria cuidar da saúde pública, e ficou com o indivíduo — que não só corre o risco de ficar doente; agora ele seria o algoz e o culpado por MATAR alguém.
Não é a primeira vez que isso acontece. O mesmo discurso de total abstinência foi usado durante o começo da pandemia de HIV. O mesmo foco no indivíduo egoísta e degenerado que era culpado por matar seus próximos.
E a estratégia lá também foi tirar o foco da responsabilidade do Estado.
O Estado brasileiro falhou muito desde o começo da pandemia: não implementou barreira sanitária nas fronteiras, nem vigilância nas divisas; não adquiriu testes suficientes;
ñ criou estrutura p/ rastreio, quarentena ou isolamento; demorou a criar 1 política pública de renda; ñ expandiu infraestrutura de telecomunicações; ñ recomendou o uso e nem distribuiu máscaras de qualidade; ñ comprou vacinas com antecedência e ñ ofereceu informação de qualidade.
Ao não criar condições para que os cidadãos pudessem tomar decisões esclarecidas, restou colocar todo o foco no indivíduo.
Um ano depois, o mesmo Estado volta o foco para o indivíduo.
Não quer decretar lockdown (decidir uma política pública) porque não quer arcar com o custo e o peso de decidir; prefere então pedir, suplicar, implorar para o cidadão não ser egoísta e ficar em casa.
A pandemia de HIV nos mostrou que estratégias de abstinência e de imposição de medo não funcionam no médio e longo prazo. Ao ser impossível seguir a regra (que prega uma abstinência perfeita), o cidadão tende a desistir.
Com a desistência, pode haver um desejo de buscar compensar o tempo perdido. Com isso, o ganho obtido com a abstinência no curto prazo é rapidamente perdido no médio prazo. Isso aconteceu, por exemplo, com o aumento de transmissão de HIV em adeptos de programas de abstinência.
Quando o programa falha, mais uma vez o Estado foca no indivíduo que não foi virtuoso o suficiente para fazer a sua parte.
Hoje, porém, um LOCK DOWN É NECESSÁRIO.
Chegamos a um ponto que precisamos do ganho obtido no curto prazo, mas precisamos ficar atentos para responsabilizar quem é o responsável pela saúde pública: o Estado.
O que podemos fazer para evitar de continuar caindo nos mesmos erros do passado?
Focar menos na culpa individual e mais na responsabilidade do Estado; entender que não existe ausência de risco e saber como reduzir o risco para um grau aceitável.
O triângulo das intervenções não farmecêuticas ajuda nisso: (via @MonicaGandhi9)
Não tem como usar uma máscara que protege tanto? +ventilação e +distanciamento.
Não tem como ventilar bem? Use uma máscara mais protetora e +distanciamento.
Não tem como distanciar? Use uma máscara mais protetora e +ventilação.
E, se puder, fique em casa.
Quem quiser saber mais sobre redução de danos (RD) no contexto da pandemia atual do @germanrlopez.
E por fim: a responsabilidade individual é importante, mas estímulos positivos funcionam mais que estímulos negativos e quem tem capacidade de fazer mudanças substanciais em saúde pública é o Estado. É importante ñ esquecer as lições aprendidas em + de 30 anos de pandemia de HIV.
E o @covidsalvador fez uma tradução para facilitar a disseminação aqui pelo Brasil.
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Em março de 2020 a mídia noticiou que havia falta de máscaras e o governo passou a importar, "a qualquer custo e sem as certificações exigidas", sem falar antes com a representante do setor (@ANIMASEG).
Sobre COMUNICAÇÃO e porque dizer que PFF protege de verdade.
Durante uma pandemia, comunicação de qualidade é fundamental. Muitas pessoas não terão tempo de pesquisar a fundo e entender todas as nuances.
Minha experiência de comunicação para saúde vem da luta contra o HIV.
O que funcionou bem na pandemia do HIV foi ter uma medida simples e efetiva de cortar o contágio: a camisinha.
No começo havia mitos e dificuldades:
-Não funciona;
-É cara;
-É desconfortável;
-Não é para todo mundo, só para quem tá mais exposto;
-Se todo mundo usar, vai faltar.
Com o tempo, o uso foi aumentando e vimos que funciona, que não faltou, que não custou caro, que a gente se acostumou a usar e hoje é faz parte do dia a dia de muitas pessoas.
Enquanto a vacina não vem, é isso que precisamos com as PFFs.
Dia 12 houve a primeira transmissão comunitária confirmada no meu estado e me despedi dos colegas presenciais. Era o último encontro antes da minha quarentena que sábado completa um ano.
(Depois descobrimos que já estava acontecendo, mas os PROTOCOLOS não testavam para isso.)
Hoje a UCSF fez uma conversa sobre o que aconteceu ao longo desse um ano. Super recomendo ver, principalmente pro pessoal da saúde e que sabe inglês.
Eles já falam no final da pandemia e em maio a vacinação será aberta a qualquer idade nos EUA.