Thread by @VianaNatalia

MEU STALKER – UM FIO 🧵

As revelações de abusos seriais de Samuel Klein e o fato de terem acontecendo por duas décadas sob um “pacto de silêncio” me fizeram pensar sobre como até pouco tempo nós – todos nós – normalizávamos a violência contra mulheres 👇

Resolvi compartilhar aqui uma fase ruim da minha vida, que aconteceu quando eu tinha 20 anos, ou seja, nos anos 2000. Eu havia acabado de sair da casa dos meus pais para morar sozinha, numa casinha de fundos na Vila Madalena. (+)

Eu estava “ficando” (se diz isso ainda?) com um conhecido, um amigo querido na verdade, carinha legal, artista, bem conhecido de todas as minhas amigas. E chegou uma hora em que decidi não ficar mais com ele. (+)

O rapaz, também nos seus 20 e poucos anos, surtou. Sofreu bastante, eu fiquei com pena dele, tentei ajudar, até que a coisa foi muito além. (+)

Eu comecei a perceber que, quando eu saia ou voltava para casa para trabalhar, frequentemente encontrava ele pela rua, na calçada oposta, casualmente. Ele acenava sem graça e eu, como sou desligada, demorei algumas semana para perceber que ele estava me seguindo de propósito. (+)

Isso me aborreceu um pouco, mas deixei pra lá. Afinal ele estava “sofrendo”, tadinho. Eu trabalhava dando aulas de inglês para executivos três vezes por dia – de manhã cedinho, na hora do almoço e no fim do expediente. (+)

Certo dia, a aula foi cancelada e fiquei em casa. Tirei uma soneca. Fui acordada com o barulho de chave na porta. Era ele. Eu jamais havia dado uma cópia da minha chave para ele. Ele tomou um susto, fechou a porta e saiu correndo, eu saí atrás dele mas não o alcancei. (+)

Me lembro até hoje da sensação estranha de ter minha casa invadida dessa maneira, de estar totalmente à mercê. Depois reparei que alguns vestidos meus haviam sumido. Mas, naquela época, ninguém conhecia o termo “stalker”. Troquei a fechadura e segui a vida. (+)

Meses depois, em uma noite quando eu estava com outro namorado e com uma amiga em casa, abrimos a porta da frente no meio de uma brincadeira. Ele estava lá, com o ouvido encostado na porta. É até hoje uma das cenas mais surreais da minha vida. (+)

Como eu morava numa casa dos fundos, ele teve que entrar pelo portão principal, passar pela garagem da proprietária, abrir um segundo portão para manter-se ali, de ouvido colado na minha porta. Quantas vezes ele fez isso?
Fingi que era algo normal, ele foi embora. (+)

Durante todo esse processo, eu era proibida de ir às festinhas da turma do colégio dele, porque “havia partido o seu coração” e “ele estava sofrendo”. E eu engoli. Com o tempo, ele desistiu, seguiu em frente, e eu também. (+)

Não acho (nunca achei) que ele tinha intenções violentas. Mas hoje me deixa perplexa como isso era normalizado, como todos nós – incluindo todos os meus amigos – achávamos que ele tinha razão de agir assim e que eu era a culpada (+)

Confesso que eu mesma só entendi que o mal-estar que eu sentia com a situação era porque aquilo era uma tremenda violência contra mim. Que ele achava que tinha algum direto sobre mim, como homem. (+)

Essa mudança de percepção é algo que eu devo ao movimento feminista e a pessoas como a @andreadip_ Hoje “Stalking” é crime. Mas isso só aconteceu depois de muita luta, muita discussão, muito debate público puxado pelas feministas na última década. (+)

É por isso que as denúncias contra os Klein têm que ser repetidas, discutidas, cobertas ‘ad infinitum ‘até que caia essa “máscara” de normalidade. A imprensa toda tem que ir atrás. Só assim isso não vai se repetir com outras meninas Brasil afora. / FIM