Em um artigo publicado em setembro de 2021 na agência de notícias do multibilionário Michael Bloomberg, o economista ultraliberal Tyler Cowen elogiou efusivamente o movimento "wokeísta" e o definiu como o próximo grande produto de exportação cultural dos Estados Unidos.

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Cunhado no âmbito do movimento Black Lives Matter, originado após o assassinato de Michael Brown em 2014, o termo "Wokeísmo" (do inglês "woke", "desperto") foi originalmente utilizado para descrever uma tendência sobre a tomada de consciência sobre o racismo.

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Desde então, a concepção do termo foi ampliada, passando a abranger, além da conscientização sobre as questões raciais, tópicos como injustiça social, feminismo e ativismo LGBT, mas sob um viés crescentemente mercadológico e forte influência da indústria cultural.

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Correlaciona-se, dessa forma, às "pautas identitárias", que nos EUA estão tradicionalmente vinculadas ao liberalismo progressista. À primeira vista, os elogios ao "wokeísmo" vindos de um economista que tem Hayek como referência intelectual poderiam parecer contraditórios.

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Uma análise mais detida, entretanto, mostra que o pensamento ultraliberal de Cowen e o progressismo compatível do movimento "wokeísta" têm mais semelhanças do que divergências. O identitarismo liberal tem como enfoque a negação da centralidade da luta de classes.

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Rejeita a compreensão das relações de exploração e subordinação e o caráter estrutural dos problemas sociais em prol de um enfoque tribalista, clubista, calcado na individualização.

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É, portanto, uma ferramenta útil à adaptação dos conflitos sociais à lógica da economia de mercado, permitindo não apenas atenuar e controlar as tensões e desarticular as lutas coletivas como também criar novos nichos de mercado.

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A estratégia não é nova. No livro "Quem Pagou a Conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura", a historiadora Frances Stonor Saunders detalha o funcionamento da tática de desmobilização dos movimentos sociais e cooptação da esquerda em prol de um "radicalismo controlado".

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Durante décadas, o governo dos EUA financiou acadêmicos, intelectuais e movimentos sociais e culturais para combater a influência marxista em prol de um progressismo antirrevolucionário, freando a adesão dos intelectuais ao socialismo e às ideologias anticapitalistas.

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Criou-se assim uma série de movimentos que eram suficientemente contestadores para criar a ilusão de oposição, ao mesmo tempo em que estruturalmente inofensivos, manipuláveis e compatíveis com os interesses do capital.

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Parte dos autores pós-estruturalistas e desconstrutivistas que traçaram os pressupostos do identitarismo liberal foram impulsionados por essa estratégia, ajudando a criar uma esquerda moderada e um radicalismo inócuo, limitado à performance, à simbologia e à retórica.

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No artigo, Cowen demonstra ter compreendido a natureza do "wokeísmo" e a continuidade da estratégia do controle do pensamento. "O wokeísmo é uma forma de manter as pessoas engajadas (...) Se vai haver uma classe progressista internacional, por que não americanizá-la?"

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Continua o autor: "O 'wokeísmo' é uma ideia que pode ser adaptada a praticamente todos os países: identifique uma forma principal de opressão em uma determinada região ou nação (...) adicione alguns floreios retóricos, expulse alguns malfeitores (e inocentes) e voilà."

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Citando John Gray, o autor enaltece o "wokeísmo" como meio de "voltar às glórias do imperialismo cultural americano" e faz uma observação de desconcertante sinceridade: "O wokeísmo é a ideologia sucessora do neoconservadorismo, uma visão de mundo singularmente americana."

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Cowen conclui o texto com um vaticínio lógico: "O wokeísmo pode muito bem ser a corda que os anticapitalistas usarão para se enforcar." O argumento é lógico. O sistema capitalista é capaz de se adaptar, instrumentalizar e monetizar quase tudo...

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... incluindo o ativismo antissistema e anticapitalista. Isso é particularmente notável no wokeísmo nos movimentos identitários liberais, desprovidos de recorte de classe ou de uma abordagem teleológica.

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Através da retórica hábil e do apelo ao simbolismo, remove-se o foco da luta de classes e substitui-se o legítimo antagonista dos movimentos sociais — a burguesia — por simulacros e disputas tangenciais, criando-se uma distração para a rebeldia inofensiva dos militantes.

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A noção do racismo como chaga estrutural é substituída pelo liberalismo garveísta. A imagética do ideário capitalista é adaptada ao conceito açucarado da representatividade, farto de mudanças estéticas superficiais e discursos enfáticos, porém nulos em termos de resultado.

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Não há estímulo ao pensamento da alteração estrutural, mas antes incentivo ao acirramento de lutas teatralizadas e farsescas, enfoque moralista e patrulhamento. Fiscalização de turbantes, discussões sobre apropriação cultural, cosplay de ancestralidade e misticismo...

19/24
... Barbies negras, videoclipes de Beyoncé ostentando fortunas e glorificando a monarquia, flashmobs universitários e saudações de "Wakanda Forever". No feminismo e no ativismo LGBT, Simone de Beauvoir e Angela Davis dão lugar a Judith Butler e à Teoria Queer....

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... e a luta pela emancipação e os problemas materiais concretos ficam em segundo plano, ofuscados pelo enfoque em reformas linguísticas, pronomes neutros, novas identidades de gênero, ações estéticas, performances e publicidade inclusiva.

21/24
Até mesmo o comunismo, o socialismo e as ideologias anticapitalistas se tornam ativos comerciais úteis à lógica da cooptação, esvaziados de suas bases teóricas e repaginados como estilos de vida, "mercadorias de luxo", marcadores de status...

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…e de diferenciação para jovens que querem se sentir exclusivos, integrantes de um clube de iluminados despertos demais para se misturarem à ralé. E assimilam como "revolucionários" os comportamentos massificados difundidos por seriados e filmes de estúdios bilionários.

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Nunca foi tão fácil ser um "revolucionário". Por isso há tantos "revolucionários" para tão poucas revoluções. São parte de um mercado que vende cursos, filmes, livros, pseudo-ativismo, comercializa sonhos e aspirações e alavanca carreiras de arrivistas compatíveis.

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Link do artigo citado:

bloomberg.com/opinion/articl…

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Jan 20
A tela "O Último Tamoio" de Rodolfo Amoedo retrata a morte de Aimberê nos braços do padre Anchieta. Aimberê foi o chefe dos índios Tupinambá (ou Tamoios) e líder da revolta indígena denominada Confederação dos Tamoios, derrotada há exatos 455 anos, em 20 de janeiro de 1567.

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Filho do cacique Cairuçu, Aimberê foi aprisionado com o pai e levado para a Capitania de São Vicente (hoje São Paulo) para servir como escravo nas fazendas de Brás Cubas. Seu pai morreu no cativeiro, vitimado pelos maus tratos dos escravagistas, mas Aimberê conseguiu fugir.

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Após coordenar uma investida que libertou os demais indígenas cativos, Aimberê uniu os líderes de 7 grupos indígenas distintos que habitavam o litoral do Sudeste (Guaianazes, Aimorés, Termiminós, etc.), convencendo-os a se juntarem à resistência aos colonizadores.

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Read 13 tweets
Jan 20
Além de revogar os pontos mais prejudiciais da reforma trabalhista, o Partido dos Trabalhadores pretende rever as alterações mais nocivas feitas pela reforma da previdência. A informação foi confirmada por Aloizio Mercadante, presidente da Fundação Perseu Abramo.

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Conforme Mercadante, a reforma promovida pelo governo Michel Temer não é economicamente viável, sobretudo pela falta de fontes de financiamento derivada do aumento do trabalho informal e da precarização, insuflados pela reforma trabalhista.

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A revisão da reforma da previdência é defendida pelos dois principais economistas que compõem a equipe de aconselhamento de Lula — Guilherme Melo e Eduardo Fagnani, ambos do Instituto de Economia da Unicamp.

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Jan 19
Sobreviventes judeus, soldados soviéticos e militares poloneses comemoram o fim do domínio nazista. Há 77 anos, em 19 de janeiro de 1945, o Exército Vermelho libertava os judeus aprisionados pelos nazistas no Gueto de Lodz.

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O Gueto de Lodz foi o segundo maior gueto criado pelas autoridades alemãs para aprisionar judeus poloneses e ciganos durante a ocupação nazista da Polônia, atrás apenas do Gueto de Varsóvia.

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O Gueto de Lodz foi transformado em um centro industrial operado por trabalho escravo, voltado a suprir as necessidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial. O local chegou a abrigar mais de 210.000 prisioneiros.

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Jan 19
"Feminista" ma non troppo: em artigo publicado em abril de 2013, Veja faz publicidade positiva para a organização ucraniana Femen e sua representante no Brasil, Sara Winter. A revista também informa sobre os planos de protestos contra a Copa do Mundo.

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Entre 2012 e 2013, Sara Winter e o Femen foram divulgados massivamente por jornais liberais e conservadores, apresentadas como ícones da "nova geração de feministas" do Brasil, defendendo bandeiras como liberdade sexual e a autonomia sobre o corpo.

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O Femen foi fundado em 2008 por um empresário chamado Viktor Sviatsky. O grupo recebe financiamento do bilionário americano Jed Sunden, fundador do jornal Kyiv Post - principal apoiador do Euromaidan, a revolução colorida que jogou a Ucrânia nos braços da extrema-direita.

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Jan 17
Há 61 anos, em 17 de janeiro de 1961, o revolucionário congolês Patrice Lumumba era assassinado por paramilitares apoiados pelos governos da Bélgica e dos Estados Unidos.

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Patrice Lumumba nasceu em Onalua, Congo Belga, em 2/07/1925. Intelectual autodidata, iniciou sua tumultuada carreira política na década de 1950, após observar as práticas exploratórias e opressivas levadas a cabo no Congo, quando o país ainda estava sob domínio belga.

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Em 1958, Lumumba reuniu um grupo de intelectuais e dirigentes locais e fundou o Movimento Nacional Congolês (MNC), o primeiro partido político nativo do Congo. No mesmo ano, participou da Conferência Pan-Africana do Povo, onde travou contato com líderes nacionalistas.

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Jan 17
O movimento negro foi um dos muitos movimentos sociais que se uniram aos trabalhadores, sindicalistas, estudantes, intelectuais e artistas para fundar o PT em 1980. Milton Barbosa, principal liderança do Movimento Negro Unificado, foi o criador da Comissão de Negros do PT.

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Fundado em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) reorganizou a luta do movimento negro, que havia sido desarticulado pela repressão brutal da ditadura militar. Foi o MNU que conduziu o protesto histórico no centro de SP em 7 de julho de 1978.

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Ao longo de mais de quatro décadas, Movimento Negro Unificado e PT sempre foram parceiros. Algumas das principais lideranças e militantes históricos do MNU eram filiados ao PT. É o caso de Lélia Gonzalez, candidata a deputada federal pelo partido.

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