Thread by @mellziland

Um artigo recente fez com que muitas pessoas de modo equivocado falassem que o RNA mensageiro da vacina da Pfizer poderia se integrar ao nosso material genético.

@mab_sp125 e eu vamos apontar os problemas do artigo e onde estão os erros dessa interpretação 👇🧶

A transcrição é um processo em que se cria uma fita de RNA a partir de uma fita de DNA, ou seja, é como se pegássemos informações específicas do material genético para criar uma receita que pode dar origem, entre várias moléculas, a proteínas.

https://twitter.com/mellziland/status/1293586340270026754

Já a transcrição reversa é quando um RNA é transformado de volta em um DNA. Esse processo é importante para as células, utilizado por alguns vírus para incorporar seu material no genoma do hospedeiro e também é usado para técnicas de biologia molecular!

https://twitter.com/mellziland/status/1293586354824257537

Mas é importante destacar uma coisa: em geral, esse processo ocorre em condições muito específicas.

Primeiro, em células humanas saudáveis, o RNA maduro está numa parte da célula bem diferente do DNA, fisicamente distantes deplatformdisease.com/blog/mrna-vacc…

Segundo, essa atividade de transcrição reversa não é vista de forma significativa em células humanas maduras e saudáveis. Em quais situações vemos bastante essa atividade?

Vemos em alguns vírus de RNA, como o HIV, que transforma seu RNA em DNA.

Mas só a ação da transcrição reversa não é suficiente para ele colocar esse DNA (vindo de seu RNA) no NOSSO DNA. Precisa de um segundo elemento que vá integrá-lo nele, chamado de (pasmem) integrase.

Também podemos ver em contextos específicos da célula: durante a divisão celular, que envolve uma molécula chamada LINE-1.

Porém, esse mecanismo dificilmente acontece em células saudáveis. Onde vemos muito? Em células cancerígenas ncbi.nlm.nih.gov/labs/pmc/artic….

Por que tudo isso é importante? Porque vai nos ajudar a entender as falhas metodológicas deste artigo. Os cientistas usaram células conhecidas como Huh7, para analisar se o RNA da vacina da Pfizer poderia se integrar em seu material genético.

As células Huh7 (células tumorais do tipo epitelial) são células “imortais”, com uma capacidade imensa de se reproduzir. Essas células foram estabelecidas em 1982 (!) a partir de células cancerígenas de fígado de uma pessoa de 57 anos com esse câncer. huh7.com/#:~:text=Huh%2…

Só por esse fato, a gente vê a primeira falha: não estamos falando de células saudáveis, o artigo utiliza células cancerígenas, que apresentam de forma significativa esse mecanismo de transcrição reversa, para avaliar o contexto da vacina da Pfizer.

Outro ponto relevante: 48h após a exposição a vacina de RNA, o CONTROLE do experimento, que não recebeu vacina alguma, tem um aumento da expressão da LINE-1 muito SUPERIOR às concentrações da vacina testadas.

https://twitter.com/mab_sp125/status/1497640003131822089

Os autores do estudo compararam a expressão de LINE-1 pela vacina não com seu controle mas fora do experimento. Um erro grave que inviabiliza totalmente essa conclusão.

Não há evidência de expressão de LINE-1 pela vacina.

E o que faz essa LINE-1 e por que estamos falando dela?

Bom, essa enzima é capaz de fazer um “copia e cola” em nosso DNA. Ela é capaz de pegar um pedaço de DNA, transformar em RNA, novamente em DNA e integrá-lo no genoma.

Mas a metodologia que foi proposta pelos autores não suporta o raciocínio de “se eu mostrar que vacina faz uma célula expressar LINE-1 eu mostro o mecanismo pelo qual pode haver integração do mRNA da vacina no genoma."

Entretanto vejam que o estudo não mostra que a vacina causou expressão de LINE-1 mas essas células cancerígenas expressam LINE-1 independentemente da vacina. Vide acima o experimento que mostramos.

Então o que houve? Simples: as células cancerígenas, como a escolhida para o estudo, expressam LINE-1. É uma das múltiplas potencialidades de uma célula cancerígena.

1- nature.com/articles/gim20…
2- ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/P…

A escolha dessa célula para o presente estudo gera um viés imenso na metodologia e erros importantes na interpretação dos dados, porque o metabolismo dessas células cancerígenas em nada tem em comum com nossas células saudáveis. Não pode ser usado como um modelo.

Fora isso, apenas um experimento do estudo mostra que TALVEZ o mRNA se transformou em DNA dentro da célula cancerígena em questão.

Mas não houve qualquer experimento mostrando que se integrou no genoma.

E, justiça seja feita, os autores não afirmam isso no estudo todo (que os dados sugerem uma integração).

Mas estamos vendo pessoas por aqui e em outros locais afirmando tal fenômeno, o que sugere um não entendimento do estudo, ou uma postura de má fé orientada para desinformar.

Essa molécula (um DNA avulso), no interior da célula, seria rapidamente degradada, portanto, para quem conhece biologia molecular, não há plausibilidade biológica para concluir que haveria potencial de integração de DNA em uma célula saudável, considerando os experimentos feitos

Portanto, MESMO se não houvesse as falhas metodológicas acima, NÃO É POSSÍVEL concluir que um resultado como esse apontasse para uma integração desse DNA (vindo de um RNA) para O NOSSO DNA.

Ah, tem mais um ponto importante, que mostra o quão diferentes são estudos laboratoriais do que ocorrem em nosso corpo: a dose da Pfizer é de 30mcg. Vamos partir desse princípio de 30mcg de mRNA. Dados de biodistribuicao apontam que 20% chega ao fígado. ema.europa.eu/en/documents/a…

Mesmo considerando que o que foi medido foi a membrana lipídica da vacina, vamos considerar que chegasse no nosso fígado 6mcg de mRNA numa dose de Pfizer. O que fizeram no experimento?

Usaram 4mcg para cada 200.000 células cancerígenas por poço de 2mL das placas de cultura. Acontece que nosso fígado tem cerca de 200.000.000.000 de células que receberiam 6mcg de mRNA. pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16930941/

Estamos falando de uma dose de cerca de 1.000.000 maior do que poderia ocorrer no nosso corpo. Acumular uma quantidade brutal de mRNA dessas pode facilmente propiciar artificialmente uma reação a formar pequenos fragmentos de DNA num ambiente com LINE-1

Em resumo: modelo usado no estudo equivocado. Experimento de expressão de LINE-1 errado. Não há experimento que mostra integração no genoma.

Portanto, é mais um estudo complicado, com falhas importantes e que não nos dá base para concluir que haveria qualquer integração por parte da vacina da Pfizer ao nosso DNA.

Cuidado com essa desinformação que, anda e vira, e retorna de forma oportunista

E cuidado com interpretações de "potenciais" dentro de algo que, pelo conjunto de experimentos e viéses metodológicos, não é capaz de acusar esse mecanismo, nem sua potencialidade para esse contexto investigado pelo artigo. É sobre biologia molecular

Versão do fio publicado no perfil do sempre relevante @mab_sp125

https://twitter.com/mab_sp125/status/1501941660300632074

Agradecimento especial para @bardinidouglas @Oparbento1 @alinefortuna2 @BrunoRobalinho @josegallucci @NaimeDr @AnaCarolPecanha @seleno_glauber e a Mari (não tenho o @ dela :( ) que sempre contribuem com ótimas discussões - e uma delas foi essa!