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Jorge Fernando morreu. Gostava das novelas dele, mas a maior lembrança dele é que ele fez parte de um dos projetos mais corajosos da televisão brasileira. Essa série aí.

Ciranda Cirandinha foi a primeira série da Globo, em 1977. A ideia era falar dos problemas que a juventude brasileira tinha na época, já que o sonho hippie tinha passado e uma renca de jovens já tinha percebido que muita coisa da utopia hippie não tinha conexão com a realidade
Por MUITA COISA, claro, entenda-se os muitos exageros do hippismo, como a utopia de que era possível todo mundo viver em comunidade, e de que havia uma nação Woodstock (no mesmo estado de calamidade pública do festival) para cada jovem
Jorge Fernando fazia um dos garotos que passavam a dividir um apartamento no Leblon - os outros eram interpretados por Fabio Jr, Lucelia Santos e Denise Bandeira (era meu crush infantil, eu tinha uns 3 anos na época)
O personagem mais interessante da série era uma ovelha negra do grupo, interpretada por Eduardo Tornaghi. Uma espécie de Jim Morrison tupiniquim que, para se tornar mais palatável, ganhou um ar de Charles Bukowski, sempre com uma garrafa na mao
Evidente que o problema do personagem não era bebida: era ácido demais e excesso de messianismo. Não dava pra explicar que o maluco era quase um dublê de Charles Manson numa série exibida na Globo em 1977
A série foi dirigida por Daniel Filho e era um bom retrato do que era ser jovem no Brasil de 1977. Vá lá: jovem que frequentava a zona sul carioca e vivia seus white people problems, mas a série era extremamente cativante e os temas eram bem "gente como a gente"
Sim, porque nos anos 1970, ser "xóvem" no Brasil era bem diferente de ser jovem lá fora. Ser fã e consumidor de cultura pop, mais ainda.
Em 1977 o jovem brasileiro ainda curtia rock progressivo e os mais avançadinhos estavam curtindo disco music e o rock que se relacionava com ela (Rita Lee, Stones, Fleetwood Mac). E mpb.
O punk, que ja chamava atenção la fora, foi uma revolta contra o mainstream do rock e seu distanciamento dos fãs. Cara, no Brasil os maiores revoltados contra uma coisa BEM MAIS ESCROTA eram os chefões da MPB. Que tinham mais o que fazer do que pensar no, er, jovem brasileiro.
Justiça seja feita: Caetano e Gil praticamente criaram o modelo de MPB jovem que vigora até hoje. Mas o fato é que não daria pra pensar num bando de moleques invadindo a mídia tocando três acordes naquela época.
A não ser que de repente alguma gravadora resolvesse ver o que é que uma certa molecada dos subúrbios de SP, que não tinha voz, nem vez, nem era enxergada pela mídia, andava aprontando. Isso ainda demoraria um tempão.
Lembrei de um texto, acho que do @tomleao, em que ele contava que Jello Biafra, num papo no Brasil, achou estranho que os roqueiros brasileiros dos anos 1980 vivessem bem pacas, enquanto la fora o rock era classe operária. Coisas do Brasil.
@tomleao Voltando a Ciranda Cirandinha, o projeto era bem verdadeiro e corajoso: mostrar que o jovem dos anos 1970, que ia pra universidade e estava tentando começar uma carreira, era um ser humano muito triste
@tomleao Ele tinha perdido várias referências, o bonde da cultura jovem passara mal por aqui e os ídolos deles ainda eram os de vários anos atrás. Não por acaso, o primeiro episódio termina com todo mundo cantando Bob Dylan
@tomleao Se eu estivesse na equipe de roteiristas, insistiria para alguem chegar la e falar "galera, um amigo meu deu esse lp importado aqui, do lou reed. bora ouvir 'kill your sons'?". Primeiro iam rir da minha cara, depois me expulsariam da equipe.
@tomleao A tristeza não era só cultural: em 1977 a ditadura militar fazia 13 anos. Quem tinha 16 anos em 1970 (como a personagem da Lucelia Santos) se acostumou a ver a repressão como parte do dia a dia.
@tomleao Era uma época de merda e um período horroroso para vc querer viver os melhores anos da sua vida.
@tomleao Hoje pode parecer infantil ver uma série em que os pais do personagem do Jorge Fernando quase se matam quando o filho resolve morar fora de casa. Mas ainda havia um outro detalhe: as pessoas nos anos 1970, hum, ficavam velhas mais cedo
@tomleao Ok, não fui claro, vamos lá: até os anos 1980, era comum que pessoas com mais de 40 já fossem consideradas "senhores (as)", pessoas respeitáveis. Fazer 40 já era sinal de velhice ou de estar perto dela.
@tomleao Da mesma forma, longe iam os tempos da juventude de quem já era mais velho. Nao havia muita conexão e, quanto mais conservadora fosse a pessoa, menos ainda ela entenderia as experiencias e os voos que um jovem (de idade ou de espirito) quer ter.
@tomleao Daí tudo a ver que a série comece justamente pelos dilemas de quatro garotos de 20 e poucos em busca de um lugar pra morar (enfim: um mocó pra fumar um, ouvir um som, ficar na moral). O mais comum é que os mais velhos nao entendessem. E tinha muito garoto que, depois dos 18...
@tomleao ... se ainda estivesse meio perdido na vida, ou era endireitado pelos pais ou posto pra fora de casa. Tem iss até hoje, imagina ha 40 anos
@tomleao Uma vez eu precisei explicar pra um estagiario o que era Ciranda Cirandinha e fiz a besteira de falar uma sandice como "ah, era a Malhação dos anos 70". Nao era, claro
@tomleao Primeiro porque Malhação tem personagens adolescentes. Ciranda Cirandinha era uma garotada de 20 e poucos. Segundo porque mal havia mercado pra adolescentes nessa época. Li por aí que ate os anos 1980, achava-se que quem influenciava na compra de roupas para os teens eram os pais
@tomleao O primeiro episódio termina com uma cena que, enfim, eu acho bastante tocante e significativa: os personagens começam a arrumar a bagunça feita pelo Joel (Tornaghi) na casa
@tomleao A camera, como se estivesse na janela, mostra cada um deles olhando fixamente por alguns segundos. Como se estivessem sendo vigiados, ou num cartaz de 'procurado'. Isso resume tão bem a época que você pode pular TODO O VÍDEO e ver so isso se estiver sem tempo
@tomleao Tem ainda outro episódio dessa série no YouTube. Ela foi relançada em DVD tem uns anos.

@tomleao No mais, R.I.P. Jorge Fernando, que - felizmente - não se tornou "aquele ator daquela série dos anos 1970, como é que o nome mesmo?" e revolucionou a teledramaturgia. Mas já merecia ser lembrado só por ter mostrado o jovem dos anos 70 para ele mesmo na TV
@tomleao Por algum motivo, é essa música que vem na minha cabeça agora. E isso daria um BELO episódio de série brasileira jovem dos anos 1970. Vai aí como homenagem ao Jorge.

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