Thread by @lftofoli

A descriminalização das drogas em Portugal causou um aumento no número de casos de psicoses?

Siga o cordel aí para entender que não é possível afirmar que a descriminalização causou uma 'fábrica de esquizofrênicos' em Portugal.

Acaba de sair um artigo científico que aponta que entre 2000 (quando Portugal descriminalizou o porte de drogas) e 2015 houve um aumento de quase 30 vezes no registro de casos de pacientes internados com diagnóstico de psicose que usavam maconha no país. onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/mp…

Para entendermos melhor o texto é necessário, primeiro compreendermos o que significam alguns pontos-chave desta discussão

1. Descriminalizar significa tirar da esfera penal a conduta do usuário de drogas enquanto o comércio das substâncias proibidas continua sendo crime.

2. As psicoses são diagnósticos psiquiátricos nos quais os seus portadores podem apresentar sintomas de perda de contato com a realidade como alucinações (ouvir vozes, por exemplo) ou ter delírios (ideias que ninguém mais aceita). A esquizofrenia é uma psicose.

3. Existe uma relação entre consumo de maconha, especialmente em grandes quantidades e com início na juventude, e o posterior surgimento de um diagnóstico de psicose. Essa relação não é completamente esclarecida, mas bastante sólida.

Posto isso, e levando em consideração que Portugal, como eu disse, descriminalizou as drogas no ano 2000, proibicionista inveterados, como o Ministro @OsmarTerra Terra, se apressaram em fazer anúncios como este.

Mas foi isso mesmo o que o artigo indicou? NÃO. Mais uma vez, o Ministro divulga uma fake news sobre drogas. Não aumentou 30 vezes o número de internações por psicose. O que aumentou 30 vezes foi a notificação de que pessoas internadas por psicose usavam maconha.

Na verdade, o número de internações gerais de pessoas com psicoses permaneceu relativamente estável durante todo este período, o que cresceu foi o registro, por parte dos psiquiatras, de que estas pessoas consumiam maconha.

Os autores do artigo descrevem duas razões principais para isso ter acontecido: 1. aumento no consumo problemático de maconha em Portugal, somado ao aumento da potência da erva; e 2. aumento da conscientização dos psiquiatras sobre a importância de registrar o uso de maconha.

Os dados para justificar o item 1 são fracos. Segundo a própria referência indicada pelos autores, o consumo de maconha em geral se manteve estável depois da descriminalização, e o de uso problemático flutuou, caindo e depois subindo.

Vide: sicad.pt/BK/Estatistica…

Quanto ao item 2, os autores não se alongam, então eu resolvi estudar melhor se algum tipo de registro da popularidade da ligação entre maconha e psicose - algo que não era tão claro há 15 ou 20 anos - teria correlação matemática com o percentual de registros de uso em Portugal.

Primeiro eu fiz uma busca no PubMed, o mais famoso banco de artigos científicos biomédicos, em busca de todos os artigos que tivessem as palavras 'cannabis' e 'psychosis'.

ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=c…

O PubMed tem uma ferramenta que permite exportar o número de artigos anuais publicados que correspondem à sua busca. Salvei esses dados e selecionei os correspondentes aos anos da pesquisa portuguesa: 2000 a 2015.

Depois eu plotei no mesmo gráfico o número de artigos de cada ano e o número de casos com psicose a cada mil internações (usei por mil ao invés de percentagem para a escala ficar comparável). Esse foi o gráfico que apareceu:

Ou seja, há quase um espelhamento do número de casos com a popularidade científica da ligação entre maconha e psicose na literatura biomédica internacional. Aí eu parti para fazer um gráfico de dispersão para ver se havia indícios de correlação entre os dois conjuntos de dados.

E o resultado foi esse: uma nítida correlação linear entre o número de artigos e o número de usuários de maconha a cada mil psicóticos internados. O índice de correlação foi altíssimo: 0,92.

Sabe-se, na Ciência, que correlação não significa causa. Existe até um site que brinca com correlações absurdas, o 'Spurious correlations'. Aqui, por exemplo, eles mostram a correlação entre o consumo per capita de queijo e o número de pessoas que morreram emaranhadas em lençóis.

Ainda assim, o meu achado mostra uma grande possibilidade de que o aumento no diagnóstico se dê por maior interesse dos psiquiatras no tema (até porque o aumento de casos tem um deslocamento para a direita, ou seja, em anos posteriores aos aumentos de textos na literatura).

Um outro elemento deve ser levado em consideração também: com a descriminalização, os usuários de maconha se sentem mais confortáveis para dizer a seus psiquiatras que usam maconha. Se isso está acontecendo, trata-se de um fenômeno com certeza positivo.

Claro, para melhor entendimento de forma inequívoca do que houve em Portugal nós precisaremos de mais estudos comparativos de outros países. Esperemos que eles ocorram em breve. O mais importante aqui, no entanto, é analisar os dados com a frieza e o cuidado que eles merecem.

Evitar leituras alarmistas ou claramente enganadoras é importante para gerarmos políticas de drogas mais RACIONAIS. O texto da @collucciclaudia sobre este artigo na Folha, por exemplo, reflete bem como se faz bom jornalismo sobre o tema: www1.folha.uol.com.br/equilibrioesau…

CRÉDITOS DE IMAGENS

A imagem de capa foi feita sobre o charge de Paulo Caruso no Roda Viva de 4/11/2013, quando o entrevistado foi o psiquiatra Valentim Gentil Filho.

O desenho da legalização/descriminalização é do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.