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Seu Gervásio era um cara realmente bacana. Morava em uma casinha apertada, em um bairro de casinhas apertadas iguais à dele. E trabalhava muito em um banco, como caixa.

Para espairecer, ele tinha um sítio num interior próximo da cidade.
O sítio era o xodó dele. As vezes ele passava dias lá, lendo e fazendo diversos trabalhos manuais, cavando o terreno todo para plantar flores e novas árvores.

Muitas vezes ele ia só.

Outras vezes, levava esposa e filha e, ainda, quando queria namorar, ia sozinho com Dona Sueli
Foi justamente numa dessas vezes, de namoro, que eles sofreram um acidente. O carro deslizou na pista molhada e bateu em cheio, bem do lado da mulher.

O lado do carona ficou destroçado. Dona Sueli teve morte instantânea. Seu Gervásio, como se por milagre, só teve arranhões.
Talvez tenha sido obra divina a sobrevivência dele. Com a mulher morta, cabia a ele a criação da filha, uma menina linda chamada Isabel.

A vida dos dois ficou fora do eixo, mas seguiram adiante. Seu Gervásio, um pai maravilhoso, e Isabel, filha obediente e estudiosa.
Eles seguiram na casinha apertada que era só afeto e amor, mesmo com a ausência absurda da mãe. Apesar do acidente, seu Gervásio continuou indo ao sítio com frequência cada vez maior, mas, também, cada vez mais solitário.
Porque Isabel, além do trauma da morte da mãe, estava crescendo, adolescente, e meio que se recusava a ficar trancada no meio do mato, sem nada fazer, enquanto seu pai fazia mil coisas.

E assim a vida foi.
Agora, pula para anos depois, muitos anos depois.

Seu Gervásio, já velhinho, belo dia teve uma dor e correu ao hospital. Se descobriu com câncer, um tipo hiper agressivo. Os médicos foram sinceros: não tem muito tempo de vida.
E mais um baque na vida da Isabel, que estava terminando o doutorado, estudando cada vez mais e dando orgulho ao velho.
E no meio da dor da filha, no meio do vai e vem constante do hospital, o pai começa a ficar inquieto, nervoso, impaciente...

- Seu Gervásio, tá com dor?

- Não, mas quero ir embora!
- Seu Gervásio, é complicado o senhor ir embora, pense bem, seu câncer é muito agressivo, o senhor poder ter uma piora.

- Não, preciso ir embora agora!

E o homem se revoltou tanto, começou a gritar que queria ir embora, que PRECISAVA ir embora, que a solução foi dar um sedativo
Ninguém entendeu nada...

Ele não pediu para ir morrer em casa, nada disso... ele só queria ir embora, inclusive disse que voltaria depois.
Mas bem, quem pode entender a cabeça de uma pessoa nessa situação, foi o que pensou Isabel, que não parava de chorar.

Mas, horas depois, quando o efeito do remédio estava passando, quando seu Gervásio foi acordando, a coisa ficou mais estranha.
Com um fio de voz, sussurrando para ninguém ouvir, seu Gervásio chamou a filha...

Quando Isabel chegou bem do lado dele, o pai ainda se certificou de que não havia ninguém no quarto e então perguntou:

- Minha filha, você me ama?
- Claro que te amo, pai, mais do que tudo.

- E sente orgulho de mim?

- Claro, que história é essa?

- Prometa que sempre vai me amar e sempre vai ter orgulho de mim!

- Prometo, pela alma da mamãe.

- Então, filha... preciso que você me faça um favor antes que eu morra...
- Quero que você vá no sítio agora...

- No sítio?

- Sim, larga tudo aqui e vai para o sítio e não faça perguntas. Eu sei que to morrendo, não devo durar muito mais, preciso que você faça algo.
- ...quando chegar lá, quero que você entre no meu escritório. Sabe aquele armário antigo de livros, aquele com rodinhas? Você vai empurrar ele e, na parede, vai encontrar um buraco. Dentro do buraco tem uns cadernos e umas caixinhas

Isabel, sem entender nada, ouvia atentamente.
- ...eu quero que você pegue tudo isso, tudo que está no buraco, e bote fogo! Faça uma fogueira e joga tudo no fogo.
E ainda havia uma condição, um pedido do pai, quase súplica: NÃO LEIA NADA DO QUE ESTÁ ESCRITO, POR FAVOR - e nisso o pobre homem começou a chorar de forma convulsiva, sem mais condições de explicar nada.
Isabel só teve tempo de jurar que não ia ler nada e dar espaço aos médicos que novamente iam sedar o homem, mais uma vez descontrolado.

Isabel foi, do jeito que estava. Entrou no carro assustada, sem entender nada, num estado de completo desespero...
...dirigiu até lá sem nem ver, e, quando viu, já estava estacionando na frente da casa e se preparando para desvendar aquela esquisitice.

E ela fez exatamente o que o pai pediu.

Empurrou o móvel...
...viu o buraco, do tamanho de uma cabeça, iluminou para ver dentre e tirou de lá uma dezena de cadernos e cinco caixas de sapato, meticulosamente encapadas.

Os cadernos, alguns eram antiquíssimos, outros eram bem mais novos...
E com aquilo tudo na mesa de estudo do pai, com a missão de queimar tudo sem ler, Isabel se questionou se deveria fazer daquela forma sem questionar, ou descumpriria sua promessa...
Ela sentou e começou a ler...

E nada, nada no mundo, nadinha no universo todo, podia ter preparado a ela para o que estava escrito ali.
Seu Gervásio tinha anotações exemplares sobre a morte de diversos animais...

Em cada folha havia uma descrição precisa do bicho, cor da pele, peso, onde foi capturado, se era de rua ou tinha dono...
...e em seguida, a descrição meticulosa sobre como tinham sido torturados e mortos, e sobre como os corpos desapareceram...

Isabel descobriu que seu pai era um psicopata que matava bichos.
Quanto mais lia, mais ela afundava na miséria humana.

Descobriu que diversos bichos da sua infância sumiram pelas mãos do pai, inclusive bichos da própria casa, um cachorrinho que ela teve, um gatinho que ela tentou criar, tudo lá, com as datas, comprovando a culpa do homem.
Eram principalmente gatos, muitos, das mais variados tipos.

E, nas caixas, havia dentes, pedaço de ossos e membros empalhados, como souvenires.

Quanto mais ela lia, mais ela chorava.

E, um fato acendeu o alerta na menina... só havia cadernos datados de depois da morte da mãe
Isabel fez o que o pai pediu.

Levou tudo para a churrasqueira e tacou fogo!

E sem saber o que pensar, se meteu no carro para voltar ao hospital.

A mãe teria morrido pelas mãos do pai? Teria sido proposital a batida só do lado dela, sem testemunhas e nem outros envolvidos?
Quando ela entrou no quarto, o pai olhou a ela e, sem ninguém perceber, Isabel fez um leve sinal de sim com a cabeça...

O pai fechou os olhos e não falou mais nada.
Isabel esperou ele acordar, pois tinha muitas perguntas a fazer a ele, mas foi em vão... horas depois, seu Gervásio morreu de forma calma e tranquila, ao lado da sua única família, sem poder revelar qualquer segredo.
Mas Isabel sabia que a letra era dele, reconheceria em qualquer lugar... e as anotações todas dos vizinhos, os dados todos certinhos... não havia dúvidas de que ele era um psicopata, mas haveria a eterna dúvida sobre o que aconteceu no dia do acidente.

E não achem que acaba aqui
Porque o homem morreu, mas precisava ser enterrado.

Isabel pediu para um amigo resolver tudo, o enterro no jazigo da família num tradicional cemitério de São Paulo...

Ela mesma não tinha condições de resolver nada de prático, pois junto com o pai morreu muita coisa dentro dela.
E o amigo fez tudo direitinho, foi publicado anúncio fúnebre, vieram muitas pessoas para o velório - porque seu Gervásio era um querido, viúvo sofrido, pai exemplar, amigo de todas as horas, colega de trabalho maravilhoso, excelente vizinho...
Quando o velório saiu, seguido por dezenas de pessoas, e quando o caixão foi colocado ao lado do túmulo, para as últimas rezas e despedidas... do nada, começaram a surgir dezenas de gatos vindos de todos os cantos.
Todo mundo percebeu e achou estranho aqueles animais circulando por ali, como se estivessem procurando algo, e alguns acharam até bonito...

- Seu Gervásio era tão querido, quase um São Francisco de Assis, olha os animaizinhos se despedindo dele...
Os gatos vinham cada vez mais e mais, cada vez mais gatos, ao ponto de ter ficado estranho...

Mas ninguém reclamou.

Só reclamaram quando um gato grande e gordo pulou no caixão e sentou bem diante do tampo de vidro, e baixou o rosto como se encarando seu Gervásio.
Foi quando alguém fez menção de assustar o bichano, mas, antes disso, Isabel gritou:

- NÃO!

...deixa o gato aí... deixa o gato aí...
E assim acabou o enterro de seu Gervásio, cercado por humanos que jamais imaginariam a real natureza daquele homem, e animais, que talvez reconhecessem sua ferocidade.
Quando o caixão começou a descer o gato branco e gordo pulou e foi embora, e sumiram os bichos, assim comp sumiu o caixão, engolido pela boca preta da terra.
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