Para espairecer, ele tinha um sítio num interior próximo da cidade.
Muitas vezes ele ia só.
Outras vezes, levava esposa e filha e, ainda, quando queria namorar, ia sozinho com Dona Sueli
O lado do carona ficou destroçado. Dona Sueli teve morte instantânea. Seu Gervásio, como se por milagre, só teve arranhões.
A vida dos dois ficou fora do eixo, mas seguiram adiante. Seu Gervásio, um pai maravilhoso, e Isabel, filha obediente e estudiosa.
E assim a vida foi.
Seu Gervásio, já velhinho, belo dia teve uma dor e correu ao hospital. Se descobriu com câncer, um tipo hiper agressivo. Os médicos foram sinceros: não tem muito tempo de vida.
- Seu Gervásio, tá com dor?
- Não, mas quero ir embora!
- Não, preciso ir embora agora!
E o homem se revoltou tanto, começou a gritar que queria ir embora, que PRECISAVA ir embora, que a solução foi dar um sedativo
Ele não pediu para ir morrer em casa, nada disso... ele só queria ir embora, inclusive disse que voltaria depois.
Mas, horas depois, quando o efeito do remédio estava passando, quando seu Gervásio foi acordando, a coisa ficou mais estranha.
Quando Isabel chegou bem do lado dele, o pai ainda se certificou de que não havia ninguém no quarto e então perguntou:
- Minha filha, você me ama?
- E sente orgulho de mim?
- Claro, que história é essa?
- Prometa que sempre vai me amar e sempre vai ter orgulho de mim!
- Prometo, pela alma da mamãe.
- Então, filha... preciso que você me faça um favor antes que eu morra...
- No sítio?
- Sim, larga tudo aqui e vai para o sítio e não faça perguntas. Eu sei que to morrendo, não devo durar muito mais, preciso que você faça algo.
Isabel, sem entender nada, ouvia atentamente.
Isabel foi, do jeito que estava. Entrou no carro assustada, sem entender nada, num estado de completo desespero...
E ela fez exatamente o que o pai pediu.
Empurrou o móvel...
Os cadernos, alguns eram antiquíssimos, outros eram bem mais novos...
E nada, nada no mundo, nadinha no universo todo, podia ter preparado a ela para o que estava escrito ali.
Em cada folha havia uma descrição precisa do bicho, cor da pele, peso, onde foi capturado, se era de rua ou tinha dono...
Isabel descobriu que seu pai era um psicopata que matava bichos.
Descobriu que diversos bichos da sua infância sumiram pelas mãos do pai, inclusive bichos da própria casa, um cachorrinho que ela teve, um gatinho que ela tentou criar, tudo lá, com as datas, comprovando a culpa do homem.
E, nas caixas, havia dentes, pedaço de ossos e membros empalhados, como souvenires.
Quanto mais ela lia, mais ela chorava.
E, um fato acendeu o alerta na menina... só havia cadernos datados de depois da morte da mãe
Levou tudo para a churrasqueira e tacou fogo!
E sem saber o que pensar, se meteu no carro para voltar ao hospital.
A mãe teria morrido pelas mãos do pai? Teria sido proposital a batida só do lado dela, sem testemunhas e nem outros envolvidos?
O pai fechou os olhos e não falou mais nada.
E não achem que acaba aqui
Isabel pediu para um amigo resolver tudo, o enterro no jazigo da família num tradicional cemitério de São Paulo...
Ela mesma não tinha condições de resolver nada de prático, pois junto com o pai morreu muita coisa dentro dela.
- Seu Gervásio era tão querido, quase um São Francisco de Assis, olha os animaizinhos se despedindo dele...
Mas ninguém reclamou.
Só reclamaram quando um gato grande e gordo pulou no caixão e sentou bem diante do tampo de vidro, e baixou o rosto como se encarando seu Gervásio.
- NÃO!
...deixa o gato aí... deixa o gato aí...