A casa era meio escura, abafada, mas outro problema nos fez querer mudar dali: o local se tornava cada vez mais barulhento.
Principalmente para minha mãe, que trabalhava lendo e escrevendo, era insuportável.
O local era fantastica: seguro, silencioso, na beira de um lago. Tinha bosque, piscina, quadras de esporte...
Em resumo, era o esqueleto de uma casa que poderia, após algum investimento, se tornar um lar.
Era arriscado, mas valia a pena e fizemos.
Quanto mais a obra avançava, percebíamos como a nova casa era grande.
A casa era gigantesca, ensolarada e ventilada, na beira de um lago. Eram três andares, sendo que só usávamos os dois primeiros. No terceiro só havia duas salas grandes e um sótão enorme.
O sótão era como um grande corredor em forma de U por cima de toda a casa.
A gente saia de manhã cedo para Belém, passava o dia todo quase fora e só voltava de noitinha.
Noites de sono perfeitas. Finais de semana agradáveis tomando banho de piscina ou cacimba.
Estávamos no céu, até que...
A primeira vez aconteceu com minha irmã. Ela, minha mãe e meu pai chegavam de noite, a casa vazia e escura. Meus pais vinham distraídos, conversando, mas minha irmã olhou para a casa e viu uma luz acesa. E a luz apagou. Do nada. Bem rápido.
Para acalmá-la, meu pai ligou todas as luzes, abriu todas as portas e mostrou que não havia nada. Até no terceiro andar eles foram para deixá-la tranquila.
Eles entraram pela cozinha e se viram as portas dos armário abertas, mas não estranharam. Revistaram a casa e nada. Depois, minha mãe disse que tinha deixado a cozinha arrumada quando saiu.
1º andar. Sala, sala de jantar, cozinha, área de serviço, depósito e garagem. Toda avarandada.
2º andar. Três quartos e uma biblioteca.
3º andar. Sem uso, duas salas e sótão.
Tudo em quase 800 metros quadrados.
Minha mãe optou por não ter piscina, então fez um bosque enorme em todo o terreno. Havia plantas e vasos por todos os lados.
As portas e janelas, esquadrilha de alumínio e vidro, tudo de correr (menos os quartos).
Nós ouvíamos com frequência janelas e portas se abrindo - mas lembrem que elas são de correr, então não era o vento.
E quando a gente ia ver, elas estavam realmente abertas ou fechadas.
Da mesma forma, era frequente achar coisas fora do lugar, mas sempre coisa pequena, para deixar a dúvida se tinha sido a gente ou um fato misterioso...
E uma vez, ao abrir a porta de noite para beber água, achei ter visto alguém no escuro, mas entre correr e ligar a luz, tinha sumido.
Por via das dúvidas, minha mãe só ficava sozinha na casa se fosse trancada, e reforçamos a segurança e a vida seguiu, e a história poderia acabar aqui, mas ainda tem o pior...
A ideia era aproveitar o espaço do sótão e fazer um apartamento para eles, no começo da vida de médicos.
Era lá que guardávamos resto de material de construção, malas, caixas, móveis velhos, coisas sem uso...
Para ir mais fundo era necessário uma lanterna ou coragem, ou loucura, pois era certo uma baque ou topada.
O sótão ainda era um local aterrorizante, mais ainda com a descoberta que fizemos, em um canto entre caixas e móveis.
Uma espécie de manta no chão, como se fosse uma cama improvisada. Ao lado, mudas de roupa pouco empoeiradas. Um anel de prata, gravado com cruzes. Latas de comida vazias. Um relógio barato.
E se alguém dormisse ali, como a gente ia saber?
A gente nunca ia no 3º. Começamos a ir mais quando meu irmão decidiu reformar. Entrar no sótão, acho que uma vez por mês, se muito, e sempre rapido e nunca no fundo.
Imaginar minha mãe, irmã, cunhada e filha dormindo ali, com alguém estranho e louco dividindo espaço com a gente... alguém que a gente quase viu várias vezes, mas sempre conseguia se esconder nas sombras.
Havia outra opção, porém.
Sei lá, mas, na dúvida, minha mãe ligou ao empreiteiro.
Explicou a situação, disse que não era bronca, só uma dúvida, mas todos foram enfáticos em dizer que não usavam o espaço e jamais tinham comido lá. Faziam as refeições no barracão da obra.
Aquilo tudo foi parar lá de forma misteriosas e sem qualquer explicação - ou talvez houvesse, mas ninguém queria assumir.
Por fim, o empreiteiro acabou notando uma coisa interessante...
O relógio era bem barato e os ponteiros ainda funcionavam.
O empreiteiro perguntou:
- Quanto tempo vocês acham que dura a bateria de um relógio? Um ano no máximo? Esse relógio não foi esquecido na época da obra, ele foi esquecido tem bem menos tempo.
O conjunto tem 2 bosques enormes.
O conjunto tem um lago, que é braço de um rio.
Em média, fora moradores, entram quase 2 mil pessoas por dia, entre empregados, prestadores de serviços e visitantes.
Um mundo
Mas, de fato, após a descoberta, as portas e janelas de correr pararam de abrir e fechar sozinhas, ou de aparecer abertas... também diminuiu os barulhos estranhas e coisas movidas.
Com o surgimento da obra, que acabaria com o sótão, talvez a presença estranha tenha fugido antes de ser descoberta, misturada na enormidade de pessoas que transitam por lá.
Fim.