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Culpa mesmo teve a mulher do peixeiro, que se encantou com a Íris, igual avó se encanta com neto.

Enquanto eu comprava peixe, passavam patinhos e pintinhos pelo terreno, um mais bonito que o outro, e cada vez que via os bichos, Íris soltava gritinhos de felicidade e alegria.
Aí, do nada, a mulher do peixeiro pega um pintinho na mão, já quase frango, preto retinto como urubu, e oferece.

Ainda tentei recusar, dizer que não tinha galinheiro, nem o que dar de comer ao bicho, mas no Marajó tudo se resolve com facilidade.
- Não precisa de galinheiro, meu filho, basta deixar solto no quintal; comer, eles comem qualquer coisa, passam o dia ciscando, ciscando, vais ver.

E como que podia negar o presente com Íris pulando de alegria, querendo pegar o bicho que se aconchegava na minha mão?
Além da filha e da mulher do peixeiro, toda sorridente com a alegria proporcionada, a me convencer também havia o próprio peixeiro, que me olhava sério segurando uma peixeira de quase meio metro na mão, do tamanho de filhote de jacaré, como se dizendo ACEITE!
A piorar a situação, resolvi olhar a cara do pinto e dei de encontro com uns olhos pretos de besta, daqueles fofinhos, que nem atinam para o mundo, e instintivamente pensei...

“...esse pinto tem cara de Gustavo.”

Agora que o bicho tinha nome, não tinha mais volta, era nosso.
Saí de lá com três quilos de pescada amarela numa mão, uma criança saltitando ao redor e um pinto na outra, pintinho de prenome Gustavo, prazer, novo agregado de casa.

Um caos, mas a filha estava feliz, e isso importava...

E aí começaram meus problemas.
Quando entrei na sala, Íris foi logo contando a novidade.

Pude ler nos lábios da minha esposa, de forma retumbante, um silencioso “puta merda, Fernando”, enquanto minha sogra vaticinava que o pinto cagaria a casa toda, e que eu tratasse de limpar tudo, caso ocorresse.
- Vai cagar nada, sogra, não se preocupe que Gustavo é pinto educado. E vai ser bom para a Íris brincar com ele.

E para provar meu dito, larguei Gustavo no chão, e foi só ele pisar no piso frio que fez logo dois cocôs na sala e ainda fugiu para o quintal, assustado.
E nisso, o insensível deixou para trás a menina chorosa e a sogra bravíssima, que me encarava soltando com fogo pelas ventas.

Enquanto isso, Lívia só repetia o puta merda, Fernando, sentido de antes, mas com maior intensidade, com nortista vontade de me esganar.
Depois de limpar as caçadas, lá fui tentar capturar Gustavo no quintal, mas o menino pinto era movido pela força da sobrevivência.

O deus das galinhas fazia ele correr igual maratonista, dando canseira, eu e meu cunhado com a língua de fora encarando o bicho impassível.
Depois desse dia, passei a dar o maior valor ao Rocky Balboa, que treinava correndo atrás de frango, em tempo de antes do crosfito, e certamente por isso virou champion mundial.

Por fim, depois de muita correria, Gustavo sumiu nas brenhas do quintal, escondido.
E foi um tal de revirar tudo que é mato, cutucando todos os buracos, mas nada do pinto aparecer.

Minha sogra, pessimista, dizia que ele devia ter sido comido pelo gavião, ou que devia ter entrado na toca da mucura e já era, enquanto Íris chorava com a repentina morte do pinto.
Eu, que precisava cozinhar três quilos de peixe, não podia me dar ao luxo de ficar sofrendo, ai fui para a cozinha, olho no pinto, outro no peixe, perscrutando o quintal buscando qualquer sinal de que Gustavo ainda estava entre nós.
Ainda botei meu cunhado de vigia, sentado num banco, vigiando o quintal pronto a me alertar qualquer movimento suspeito que restabelecesse esperanças de estar vivo meu pinto.

Acontece que nada aconteceu!
Cozinhei durante horas, servimos a mesa e comemos, e quando já estava me acostumando com aquela vida vazia de pinto, eis que surge, na porta da sala, o franguinho Gustavo todo descabelado, parecendo alma penada (rá!), como se tivessem usado o pobrezinho como espanador.
Dei um grito de felicidade que assustou todo mundo, e Íris me acompanhou gritando viva, viva, aí o Gustavo deu a volta na casa e entrou pela cozinha, e minha sogra disse:

- Tomara que ele não cague na cozinha...

E Gustavo, consciente, foi lá e cagou na cozinha.
Depois a sogra disse:

- Tomara que não suba nas panelas...

E Gustavo, consciente, subiu nas panelas.

Por fim, minha sogra disse:

- Tomara que não tente comer o pão...

E Gustavo, consciente, ainda fez menção, mas foi repelido pelo berro terrível da sogra.
Enquanto minha sogra gritava que queria o ponto fora, e Lívia ainda falava o puta merda, Fernando, Gustavo aproveitou e fez mais um coco enorme na cozinha.

Foi a gota d’água:

- Esse frango vai embora agora MESMO...

Mas como fazer para pegar o bicho?
Gustavo não colaborava. Além de cagar em tudo, e fazer tudo que era proibido, ainda tornou a fugir para o quintal, onde ninguém conseguia pegá-lo.

Antes que me matassem, resolvi agir.
Fiz uma arapuca com caixa de papelão, com graveto e fio, igual faz para pegar passarinho, aí espalhei a trilha de pão pelo terreno e me deitei no mato esperando a boa vontade do Gustavo, enquanto os mucuins me devoravam as partes pudicas, dito o pinto, o meu pinto, não o fujão.
Foram longos minutos de espera nos quais Gustavo chegou bem perto de ser capturado.

Da 1º vez, já quase lá, Lívia chegou na porta do quintal e perguntar, meio perplexa:

- Que aconteceu?, me vendo no mato, sofrendo de coceira no íntimo.
Nem precisei explicar, porque Gustavo e assustou com a voz assustada da Lívia e saiu correndo de volta para seu buraco negro, e por si, já deu a resposta necessária.

Da 2ª vez foi a sogra, que viu Gustavo entrando na armadilha, mas não me viu no mato controlando tudo...
Ai a sogra veio gritando, vitoriosa, achando que tava ajudando:

- Fernando, Fernando, corre que achei Gustavo.

Nesse momento ela me viu no mato, e quando se deu conta da situação, saiu se rindo, como vingada de todas as cagadas feitas em sua casa.
Quando já desistia da caçada, por um lance de sorte somado à burrice do pequeno, Gustavo, curioso, entrou na área de serviço onde foi cercado numa luta inglória que, assumo, quase perdi.

Capturei o pinto, finalmente, que estava rígido, duro de medo, entre meus dedos.
Foi duro me despedir do pinto.

Ainda tentei convencer a sogra de que era possível a convivência, de que Gustavo manteria o terreno limpo e seria companhia para nossa menina.
Prometi mesmo construir um belo galinheiro – o que a sogra não aceitou, talvez pela proposta de local, que idealizei bem abaixo da janela de seu quarto.

Paciência.

Enfim, fui devolver o pinto na casa do peixeiro.
Expliquei toda a situação e as dificuldades que encontramos, os medos que tivemos, ao que ela me questionou:

- Mas porque não comeram ele, então? Daria um bom franguinho de leite...
Respondi, indignado:

- Minha senhora, jamais poderia comer o Gustavo.

- Gustavo?

- Sim, é o nome dele.

- Mas meu senhor... porque deu nome ao bicho? Agora que tem nome, nunca mais vai poder virar canja...

Entristeci a mulher do peixeiro, rs
Descobri então, quase sem querer, que bicho com nome não se mata, e de todas as lembranças boas desse dia, sobra a principal, de que Gustavo estará tranquilo no seu novo velho lar, salvo pelo nome dado por seus olhos.

Luv u Gustavo

Fim
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