My Authors
Read all threads
Não tenho dúvida de que minha mãe tem estrela.

Nascida em Santa Isabel do Pará, foi morar no Rio de Janeiro para fazer mestrado e doutorado na UFRJ.

Agora, imaginem o sucesso que minha mãe fazia: inteligente, culta, decidida, bonita, senhora de si e revolucionária.
Na efervescência do Rio de Janeiro dos anos 70, mergulhada em livros enquanto meu pai fazia revolução, minha mãe atraía histórias maravilhosamente curiosas.

Por exemplo: belo dia, mamãe pegou um avião com sua melhor amiga, Sílvia Pimenta.
Quando chegou na sua poltrona, descobriu estar sentada bem ao lado do Belchior.

Tia Silvia conta que o homem ficou tão apaixonado, que passou o voo todo cantarolando para minha mãe, que descartou as investidas pois era casada - e muito bem casada.
Outra história que contam seus amigos do Rio, foi da vez que minha mãe foi paquerada por Caetano Veloso.

Estavam numa festa, na casa de amigos em comum, e Caetano grudou na mamãe, perdidamente apaixonado por seus olhos negros como sementes de açaí.
Minha mãe, obviamente, deu um chega para lá no cantor, que já era bem famoso. Ela mesma tinha diversos LPs do Caetano, mas aqueles olhos negros de açaí só tinham visão para os olhos de guerrilheiro de meu pai.
Como essas, outras histórias devem ter havido.

Mas, bem... existe a história de um sassarico de minha mãe que... bem, não se pode culpá-la.

Sassarico no bom sentido, ok? Uma paixão platônica, a distância, e que foi se aproximando, se aproximando... e virou amizade.
Pode entrar, Carlos Drummond de Andrade.
Acontece que o Drummond morava bem pertinho do apartamento de meus pais.

Drummond, no apto. 701 do Ed. Luiz Felipe, da Rua Conselheiro Lafayete, 60, divisa de Ipanema com Copacabana.

Meus pais, no apto. 101 do Ed. Bogotá, na Avenida Nossa Senhora de Copacana.
E, bem no térreo do apartamento dos meus pais funcionava uma agência dos Correios - justamente a que Drummond usava todos os dias, num mundo sem internet, celulares e e-mail.

Minha mãe descobriu isso e ficava na janela esperando chegar o poeta.
Por vezes, ela e os amigos se revezavam entre livros e a vigilância.

E, quando Drummond dobrava a esquina, desciam todos e entravam na agência com mil cartas imaginárias, só para observar Carlos de longe.
Drummond já era o maior poeta brasileiro, um dos maiores em língua portuguesa. Era patrimônio cultural do país e ídolo de toda uma geração que estudava letras na UFRJ - incluindo mamãe.

Ela conta que, por vezes, na fila, conseguia se aproximar tanto que sentia o perfume dele.
Durante poucos minutos ela guardava os traços das mãos, das roupas; observava os livros que ele carregava. Tudo.

Acontece que Drummond não era besta, e minha mãe não passava despercebida.

Com o tempo, começaram os ois, os bons dias, como vai.
Quando Carlos soube que minha mãe era paraense, que estava no Rio estudando letras, ficou feliz.

A felicidade triplicou quando descobriu que a orientadora de minha mãe era Cleonice Berardinelle, sua amiga de longa data.
Drummond e Dona Cleo tinham um forte laço.

Dona Cleo, hoje Imortal da Academia Brasileira de Letras, maior conhecedora de Camões e Pessoa, além de amiga era confidente.

Era o que faltava para Drummond e minha mãe se tornarem amigos, talvez fruto de uma paixão platônica.
Meus pais passaram a ir em todos os eventos de Drummond. Eras festejados de forma deliciosa pelo poeta, que tinha um carinho especial pela Lila, de Belém, perdida nas terras cariocas.

Certa vez, Drummond brigou com eles: estavam gostando muito com livros, eram estudantes...
Meu pai disse que era o melhor gasto, mas Drummond se revoltou.

Dias depois surgiu de surpresa na casa de meus pais, cheio de livros seus de presente, todos dedicados.

Aqui, um ponto engraçado da história...
No dia que Drummond fez isso, meus pais estavam fora. Só estava a irmã caçula da minha mãe, Anabela, que não abriu a porta para o poeta, e mal conversou com ele pela correntinha.

Só depois de ver os livros, as fotos, se seu conta do fora, mas era tarde. Drummond já tinha saído.
A amizade perdurou por muito tempo. Se falavam por telefone, trocavam cartas, se encontravam em lançamentos, soires, livrarias...

Até que minha mãe engravidou de mim e decidiram voltar a Belém, para que eu pudesse ser paraense.

O Rio ficou na memória.
Mesmo distantes, mamãe e Drummond mantiveram contato durante anos.

A última vez que se falaram foi prosaica: meu pai estava montando uma rede de editoras clandestinas em todo o país, para publicação de livros marxistas, ainda proibidos pela Ditadura.
E, na busca pelo nome da editora, minha mãe sugeriu Boitempo, nome de um livro do Drummond.

Faltava a autorização. Mamãe pegou o telefone e ficou horas com seu outro Carlos contando as novidades.

Ao final, Drummond adorou a ideia e autorizou o uso do nome.
A primeira Boitempo, montada por meu pai e Raimundo Jinkings, pai da @leilajinkings, não durou muito tempo.

Mas é daí, dessas lembranças maravilhosas, que veio o nome da atual @editoraboitempo

Tudo no mundo está conectado.
Drummond morreu em 1987, pouco depois de perder sua única filha. Segundo ele, a vida não tinha mais sentido.

Os amigos de minha mãe, muitos já morreram, outros se perderam no tempo.

O casamento de meus pais se acabou, mas eles seguem sendo muito amigos, e, nós, família.
E Dona Cleo, imortal, brinca com seus 103 anos, ainda do alto do posto de maior intelectual viva das letras portuguesas.

Minha mãe e ela ainda se falam, vez ou outra, para fofocar sobre o Rio de Janeiro dos anos 70.

Fim
@RitaLisauskas, minha querida estudante de Letras, olha esse rolê.
Aproveitando, informo que tem mais:

No Telegram, um canal: t.me/tantotupiassu

No Facebook, uma página: facebook.com/tantotupiassu/

No Instagram, fotos fofas de pimpolhos: instagram.com/tantotupiassu/
Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh.

Enjoying this thread?

Keep Current with TANTO

Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

Twitter may remove this content at anytime, convert it as a PDF, save and print for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video

1) Follow Thread Reader App on Twitter so you can easily mention us!

2) Go to a Twitter thread (series of Tweets by the same owner) and mention us with a keyword "unroll" @threadreaderapp unroll

You can practice here first or read more on our help page!

Follow Us on Twitter!

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3.00/month or $30.00/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!