My Authors
Read all threads
Tudo começa no final de 1964.

Meu pai terminava o curso de direito e a Ditadura derramava seu véu de ferro velho sobre o país.

Diante do cenário de obscurantismo, meu pai, e um grupo de amigos, resolveu criar uma revista sobre literatura e arte.
A reunião aconteceu num restaurante chamado “Cova da Onça”, na Cidade Velha, onde hoje restam as cinzas do Bachara Mattar.

A discussão ia animada, já quase acertados todos os detalhes, quando os soldados do Exército entraram e prenderam todos os futuros editores.
Acontece que o dono do bar, sem entender nada das brincadeiras dos jovens, atravessou a tua e denunciou a todos como COMUNISTAS à 5ª Companhia de Guardas que ficava na, hoje, Casa das 11 Janelas.

Aqui, nesse momento, entra um dos personagens principais da história: Thomas Mann.
Thomas Mann, escritor, romancista, ensaísta, contista e crítico social alemão.

Recebeu o Nobel de Literatura de 1929.

Considerado um dos maiores romancistas do século XX.

E estava na reunião, junto de meu pai, por meio de um volume de A Montanha Mágica, de sua autoria.
Fazia pouco tempo, meu pai tinha comprado o livro e estava devorando as páginas, adorando a história.

Mas, aí, veio a prisão e A Montanha foi confiscado.

Dessa vez meu pai ficou 2 dias presos e, quando solto, não retornou a leitura do livro, que ficou guardado.
No ano seguinte, 1970, meu pai já comandava a ALN do Marighella no Pará e estava na clandestinidade.

Por uma estranha coincidência, sentiu vontade de recomeçar a leitura de A Montanha Mágica e pediu para minha mãe pegar o velho exemplar para ele.
E isso foi feito.

Setembro de 1970, meu pai já estava na metade do livro quando foi preso novamente, desta vez, pela Polícia Federal.

Junto de meu pai, foi também preso o Thomas Mann, conforme consta nas páginas do Inquérito Policial Militar.
Dessa vez a coisa foi horrenda.

Meu pai sabia de muito. Vieram delegados federais do Rio e gente do Exército atrás de informações, e, por um dos estranhos caminhos da vida, por causa da Marinha, meu pai não foi morto. Achavam ele muito “valioso” para morrer.
Meu pai passou três meses absolutamente incomunicável sendo torturado.

Para esconder a prisão dele prenderam outro Carlos Sampaio, completo inocente, que era apresentado quando minha família fazia solicitação de visita ou de informações.
Meu avô, que na época era Deputado Estadual, recorreu a quem pode e não conseguiu salvar seu filho da sanha horrenda dos milicos.

Meu pai nunca me contou das torturas que sofreu, mas muita gente me fala, e daí sei das coisas:
Telefone, choques, pau de arara; fome, privação de sono, queimaduras nas solas do pé; surras homéricas; terror psicológico; e muito mais que não me contam, para me preservar.

Sabe o que meu pai fez?

Jamais disse o nome de alguém ou deu qualquer informação.
Sofreu tudo calado para dar tempo de que pessoas se escondessem, de que pessoas fugissem e ficassem em segurança. Quanto maior fosse seu silêncio, maior seria a segurança de seus companheiros.

Meu pai pesava 45 quilos quando finalmente puderam visitá-lo.

E passou 3 anos preso.
Quando foi solto, em 1974, dentre os quase 100 itens apreendidos, pouquíssimos foram devolvidos.

Mas quem estava lá?

Isso mesmo: o surrado exemplar de A Montanha Mágica, do Thomas Mann, cuja leitura tinha sido mais uma vez interrompida pelos militares.
Depois disso, meus pais casaram, foram para o Rio, minha mãe estudando, meu pai trabalhando.

Em 1978 eu nasci.

E, em 1980, morando em Belém, minha mãe precisou ir ao Rio para conversar com Cleonice Berardinelli, sua orientadora no doutorado.
Meus pais resolveram passar primeiro em Belo Horizonte, ainda para discutir a questão de montar editoras estaduais para publicar livros de teoria Marxista.

E adivinhem qual livro meu pai resolver levar para a viagem?

O velho exemplar de A Montanha Mágica.
Em BH as coisas iam bem, as reuniões aconteciam sem grandes problemas. Minha mãe aproveitava para rever sua irmã e passear comigo.

Meu pai tratava das editoras e lia Thomas Mann, até que tudo mudou repentinamente.
Em um dos encontros, chegou a mensagem de que a polícia daria uma batida lá dentro de alguns minutos.

Correria. Medo. Uns protegendo os outros e levando as informações mais comprometedoras.

Meu pai foi perseguido pelas ruas do centro de BH e conseguiu fugir em cena de filme.
Já seguros, meus pais decidiram antecipar a ida ao Rio e ficar de forma clandestina na cidade.

Por segurança, optaram por me deixar em BH com minha tia, pois, se fossem presos, deus sabe o que podiam fazer comigo.

Foram longos meses longe de meus pais. Eu tinha dois anos.
No Rio, eles passavam aperto. Trocaram de apartamento diversas vezes, pulando de esconderijo em esconderijo, sem roupa, sem nada, mas com o livro.

Meu pai tinha certeza de que morreria se fosse capturado. Por fim, ficaram dias escondidos numa casa em obras, no meio dos tapumes.
Por fim, conseguiram voltar a Belém, onde me reencontraram (nem consigo imaginar o que foi, para eles, ficar sem qualquer notícia de mim...)

Isso tudo meu pai contou numa carta, em que termina com a fatídica decisão:

“Aí, resolvi não ler mais esse livro.”
Agora, pula para dezembro de 2019.

Clima horrendo no país, um cheiro de podre conhecido, de desmando e intolerância...

Meu pai vem me visitar e dá de cara com quem?

Exato, com seu velho exemplar de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, jamais lido e presente em suas 3 prisões.
Resgatei o livro da casa de minha mãe sem ter qualquer ideia da história toda por trás de suas páginas.

Sempre foi um livro que quis ler, mas nunca rolou. E, naquele monento, A Montanha estava no topo da minha pilha de leitura.

Meu pai ficou branco, mas não disse nada.
No dia seguinte ele apareceu em casa com uma nova edição e disse:

- Sempre que comecei a ler esse livro fui preso.

E a história toda que contei, ele me narrou numa linda carta, agora, no início da pandemia (27/03/2020).
Acontece que o Covid chegou, coisas aconteceram e minha pilha de leituras morreu, esquecida num canto.

Nela, A Montanha Mágica.

E meu pai, talvez para testar alguma teoria, talvez para ver até onde vai minha coragem, tem me cobrado de ler o livro que permeia nossa história.
E, bem... assumo que fico receoso.

Não falo de prisão, mas, você leria um livro com esse histórico de situações ruins no meio de uma pandemia?

Aí entram vocês.

Depois dessa narrativa, devo ler A Montanha Mágica?
Ei, @cialetras , me patrocina. To fazer pub dos seus livros ❤️ Manda livros pra mim.
Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh.

Enjoying this thread?

Keep Current with TANTO

Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

Twitter may remove this content at anytime, convert it as a PDF, save and print for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video

1) Follow Thread Reader App on Twitter so you can easily mention us!

2) Go to a Twitter thread (series of Tweets by the same owner) and mention us with a keyword "unroll" @threadreaderapp unroll

You can practice here first or read more on our help page!

Follow Us on Twitter!

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3.00/month or $30.00/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!