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No início dos anos 1970, Barbosa, no interior de São Paulo, ainda era uma cidade minúscula onde todo mundo se conhecia.

Nessa época, minha avó morava lá com meu avô, minha mãe e seus irmãos numa grande casa de esquina, bem pertinho do cemitério da cidade.
Vovó, especialmente, conhecia todo mundo.

Primeiro, porque vendia frutas no lombo de uma carroça e percorria a cidade todos os dias.

Segundo, porque ela costurava, e como a cidade quase não tinha lojas, era ela quem fazia muitas das roupas das festas de Barbosa.
Nossa casa, como já disse, ficava num terreno imenso, bem na esquina da rua que subia ao cemitério.

A casa, em si, era pequena, mas tinha um gigantesco jardim na frente e um quintal maior ainda.

A cidade não era violenta, mas vovó sempre trancava o portão de noite.

De noite...
Então, lembro bem daquela noite. Caia uma chuvinha fraca e não tinha lua. O terreno todo era um breu danado. A gente não enxergava dois metros fora da janela.

Devia ser por volta de 21 hs, todo mundo se preparando para dormir, quando ouvimos uma batida fraca na porta da sala.
De cara, todo mundo ficou confuso, porque o gradil da entrada estava trancado e o terreno era todo murado.

Para alguém bater na porta teria sido necessário passar por tudo isso, o que nos deixou bem preocupados.

Com cautela, meus avós foram até a porta e perguntaram quem era.
Ouvimos então uma voz fraca de mulher pedindo socorro. Mal se ouvia a súplica dela no meio do barulho da chuva.

Minha avó, mulher sempre valente, correu e abriu a porta, mesmo com meu avô contrariado.

Deram de cara com uma mulher magra carregando um bebê.
Assim que entrou, ela começou a chorar e soluçar tão forte que achamos que teria um troço.

A criança, agarrada na mãe, também chorava.

E nós notamos as diversas marcas roxas nos braços e corpo dos dois. Era uma completa desconhecida, o que chamou nossa atenção.
Pois não havia morador de Barbosa que minha avó não conhecesse. Dali a 20 léguas, minha avó sabia nome, ascendência, história...

- Moça, se acalme. Que aconteceu? - vovó falou enquanto me mandava buscar água na cozinha.

- Por favor, não deixe ele me encontrar.

- Ele quem?
- Eu já bati em tanta porta, gritei, bati corrente e ninguém me ajudou, só a senhora. Parece que ninguém me escuta - e novamente caiu no choro.

- Você precisa me dizer quem tá te procurando. A gente precisa chamar a polícia.

- É meu marido, mas a polícia não pode fazer nada.
- Pois vamos ver - falou minha avó, decidida - Hoje você dorme aqui, amanhã a gente resolve essa história.

Dito isso, vovó mandou arrumar a cozinha do fogão a lenha, que ficava depois da cozinha “tradicional”, meio que isolada do resto da casa.

Assim, todos ficavam seguros.
Preparamos um restinho de janta, um pão e algumas frutas, e ainda um pouco de leite que havia.

Atamos uma rede e nos certificamos de que o fogão a lenha estava apagado.

Com a casa mais calma, começamos a nos preparar para dormir novamente, quando, então, ouvimos...
Batidas fortíssimas na porta da frente, bem diferentes das batidas fracas de antes.

Agora, os murros eram tão fortes que saia até poeira do caixilho, como se estivessem derrubando a porta.

E, naquele exato momento, o caos se instalou.
Meus tios menores gritaram de medo e foram se esconder num dos quartos. Minha avó se desesperou e pediu para meu avô buscar sua arma.

E, da cozinha onde estavam mulher e criança, veio um grito alucinante de horror, que na hora me fez chorar.
Minha avó se pôs a gritar com a pessoa que socava a porta, perguntando quem era, que devia ir embora, que tinha arma na casa, mas isso só fez com que as batidas ficassem mais e mais fortes, totalmente descompassadas, igual nossos corações.
Minha avó mandou minha mãe ir vigiar a mulher na cozinha do fogão a lenha, talvez por ter receio de que a pessoa que batia na porta conseguisse entrar por alguma janela - e assim minha mãe fez.

Enquanto meu avô corria, enquanto minha avó vigiava a porta, eu fiquei observando.
E minha mãe viu a mulher ajoelhada no chão, agarrada à criança que, agora, estava estranhamente silenciosa. A mulher não falava nada, só se balançava pra frente e pra trás, como se implorando por paz.

E foi então que aconteceu. Minha mãe nunca soube explicar...
Mas, subitamente, uma chama enorme surgiu, como se o fogão a lenha estivesse em chamas, e logo tomou conta da cozinha.

Minha mãe gritou por socorro e todos correram para apagar o incêndio, mas não tinha muito o que fazer.

O cômodo ardia em chamas.
E, nisso, notamos que havia parado o barulho na porta...

Meu avô, armado, deu a ordem:

- Eu vou sair pra pegar o vagabundo. Vocês tentem baixar a chama pra ela não chegar muito perto da casa.

Dizendo isso, ele destrancou a porta e sumiu na escuridão. E nos pegamos baldes...
Só que, para nossa surpresa, enquanto enchíamos os baldes, sem ter noção do que fazer, o brilho do fogo foi sumindo, sumindo, e em poucos minutos não havia mais nada.

Reaolvemos entrar na cozinha, apesar de esperar encontrar uma cena horrenda, e, de fato, havia.
A rede estava completamente rasgada, como se um animal tivesse usado as unhas... a comida estava toda pisoteada, o leite derramado...

Mas não havia sinal do corpo da mulher, nem da criança e, mais estranho, NADA ESTAVA QUEIMADO.
Tirando a bagunca da marca dos passos, das coisas desarrumadas, a cozinha estava exatamente igual.

Checamos janelas, mas todas estavam trancadas por dentro. Não tinha como eles terem saído dali.

Nisso, meu avô voltou:

- E aí, encontrou alguém?
- Nada... não tem ninguém e o gradil está todo fechado. Mas tem uns rastros de passos bem estranhos, mas eu devo estar enganado.

- Como assim?

- É que além das marcas de sapato de homem, também tem rastro de uma mulher e uma criança.

Todos se olharam sem entender nada.
Minha avó, teimosa que era, insistiu que tinha coisa errada e disse que ia checar o gradil e o portão.

Minha mãe ficou trancada em casa com os irmãos menores, minha avó e meu vô foram fazer uma segunda checagem.

Demoraram pouco, mas voltaram mais assustados ainda.
Minha mãe diz que nunca viu minha avó tão branca.

- O que foi? Viram algo?

Minha avó contou então que, enquanto verificavam novamente o gradil, passou na tua um cortejo de vira-latas, indo na direção do cemitério, rosnando baixo como se vissem algo do outro mundo...
E verificaram tudo novamente. As janelas, a comida pisoteada... todos os cômodos.

Naquela noite ninguém dormiu, todos passaram as horas amontoados num único quarto, meu avô com a arma na mão.

E o dia amanheceu, e todos estavam prontos para superar aquilo...
Minha avó, mesmo morrendo de sono, estava com a carroça de fruta carregada... meu avô se preparando para sair... minha mãe e meus tios arrumados para a aula... quando, bem cedinho de manhã, passa um cortejo fúnebre em direção ao cemitério.
Correjo pequeno, de gente pobre...

Mas uma coisa chamou a atenção. O mesmo bando de vira-latas da noite anterior acompanhava o cortejo, agora, em silêncio, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Minha mãe gelou e se agarrou nos meus tios. Minha avó ficou com eles, e meu avô foi atrás de descobrir algo.

E voltou, minutos depois, com a seguinte história:
- Tão enterrando uma mulher e uma criança. Foram mortos pelo marido dela... diz-que batia direto na mulher, tinha ciúmes. Parece que deu a louca nele faz uns 3 dias e resolveu tacar fogo na casa com todo mundo dentro... foi lá em Promissão, mas demoraram pra liberar os corpos.
- ...mas a familié aqui de Barbosa, tavam lutando esse tempo todo pra poder enterrar a mulher e o bebê aqui... só conseguiram liberar os corpos ontem de noite...

Fim
Essa história é inspirada num relato da @sampsycho, contado via chat do @telegram_br.

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E no Instagram, para fotos fofas, sem fantasmas, é instagram.com/tantotupiassu/
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