A frase do Guedes sobre ser mais fácil formar um esquerdista que um liberal retoma uma das constantes do discurso neoliberal: a ideia de que o neoliberalismo é um pensamento da complexidade social, ao passo que noções como "justiça social" são resquícios de formações sociais
mais simples, sentimentos ou hábitos mentais primitivos (antropomorfismo, finalismo, incapacidade de conceber ordens que emergem espontaneamente). Isso remonta à primeira grande conquista intelectual do neoliberalismo, no contexto do chamado
“debate sobre o cálculo socialista” nos anos 20 e 30: o argumento de que o mercado, através dos sinais que o sistema de preços oferece aos agentes econômicos, é capaz de reunir e processar informação dispersa com uma eficiência que um órgão de planejamento jamais poderia ter.
O problema é que, na outra ponta, a noção de sociedade como nada mais que um agregado de indivíduos cujo único tecido conectivo é o mercado é um impedimento para qualquer compreensão de fenômenos complexos. A ideia de que um bem ou serviço só tem valor para seu consumidor direto
torna impossível perceber os efeitos indiretos e vantagens coletivas que uma quantidade suficientemente grande de indivíduos tomarem determinada atitude pode ter. Por exemplo: a vacinação em massa não é boa apenas para quem se vacina, mas para todo mundo, na medida em que,
a partir de um certo limiar quantitativo, produz a chamada imunidade de rebanho. Pode-se fazer argumentos semelhantes com saúde e educação públicas. Mas não: alguém como Hayek irá defender que, se uma pessoa não usa um serviço público, ela deve ser ressarcida pela fração
de seus impostos que vai para aquele serviço. O único interesse comum, no fim das contas, é que os agentes econômicos possam usar a informação disponível no mercado para oferecer um bem ou serviço determinado ao preço mais baixo em que é possível produzí-lo. Nada mais importa.
Este ponto cego intelectual fica evidente numa situação como a pandemia. A incapacidade de Guedes de entender que a quarentena só funciona se a adesão for suficientemente grande, e a oposição do direito individual de ir e vir (e se contaminar) a este interesse comum não é *só*
mau-caratismo ou limitação cognitiva, mas uma espécie de cegueira necessária: se você supõe que a sociedade é só um agregado de indivíduos, por definição não pode haver efeitos sociais complexos ou propriedades emergentes, e a única complexidade é a do mercado.
Resumindo: neoliberalism is complexity thinking for the simple-minded.
