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Torcer pela morte de Bolsonaro é igualar-se a ele? Opor-se a quem tem posições extremas é tornar-se um extremista? E o que um povo da Nova Guiné tem a nos dizer sobre polarização política? Se você ficou curiosx, mas acha a expressão “segue o fio” cafona: follow me.
Na década de 30, Gregory Bateson identificou entre os Iatmul, da Nova Guiné, um padrão social que ele batizou de “cismogênese”: um processo pelo qual o comportamento de dois indivíduos ou grupos vai se diferenciando como resultado cumulativo da interação entre eles.
Para Bateson, a cismogênese é simétrica quando a diferenciação se dá entre comportamentos iguais mas em sentidos opostos (competição); e complementar quando produz comportamentos desiguais (eg, dependência/cuidado, dominação/submissão).

Corta para o final dos anos 00.
Quando os cientistas políticos dos EUA começaram a falar numa polarização política dividindo a sociedade americana, a maioria empregava um adjetivo que se perdeu na tradução desse debate para o Brasil. A polarização, segundo eles, era "assimétrica". O que isto queria dizer?
Que ela era impulsionada predominantemente por um dos lados, cuja atuação parlamentar e extraparlamentar (eg, Tea Party) se tornava cada vez mais radical, obrigando o outro lado a ceder mais e mais se quisesse governar. Nos termos de Bateson, uma cismogênese complementar.
Mas esta radicalização da extrema direita se dá num contexto em que a esquerda já vinha há décadas caminhando para o centro. O que motiva a radicalização da direita, então, se ela já vinha ganhando terreno sem parar desde a década de 80? A luta em torno de questões de costumes
e valores, única área em que a esquerda tivera alguns avanços desde os anos 80. São as chamadas “guerras culturais”, que virarão o motor principal da polarização assimétrica promovida pela direita a partir daí. Mas a questão chave é: porque a esquerda aceita jogar nesse terreno?
Justamente porque já havia abandonado o terreno da economia e do projeto de sociedade. Comprar a briga sobre cultura e valores permitia, assim, redefinir-se numa situação em que ela também abraçara a globalização neoliberal: esquerda e direita tornam-se equivalentes na economia,
mas a esquerda é o lado que luta pelo reconhecimento das minorias. Dizer que foi porque passou a se preocupar com o “particular” (minorias) que a esquerda abriu mão do “universal” (um projeto alternativo de sociedade) é inverter a ordem das coisas. O que houve foi o contrário:
foi quando deixou de articular uma ideia própria do todo (um outro sistema produtivo) que a esquerda centrista passou a preencher o vazio deixado por essa desistência com bandeiras particulares. Resumindo, as guerras culturais foram boas para a direita, que construíram com elas
uma base popular para projetos antipopulares; e para a esquerda centrista, que graças a elas puderam manter uma base fiel mesmo abandonando suas antigas bandeiras (welfare state, socialismo...). Isto mostra que a dita polarização frequentemente combina dois processos distintos:
uma polarização assimétrica, pela qual um dos lados faz o outro ceder cada vez mais (cismogênese complementar); e uma polarização simétrica, pela qual as identidades de cada lado vão se definindo cada vez mais em oposição a outra (cismogênese simétrica). Dito de outro modo:
é perfeitamente possível que uma radicalização da identidade (a afirmação de uma identidade cada vez mais exclusiva e autorreferente) coexista com um programa político cada vez mais diluído. Esse foi, por exemplo, o movimento do petismo a partir de 2014, que arrastou muita gente.
Mas se o outro lado ganha a disputa por caracterizar a si mesmo como o lado do “cidadão comum” e a você como o Outro, o corpo estranho, esse movimento é uma grande armadilha –– porque você está ao mesmo tempo fazendo cada vez mais concessões e se isolando cada vez mais.
O discurso midiático sobre polarização ou usa a radicalização identitária para desviar a atenção de questões programáticas, frequentemente criando simetrias tipo “o presidente vetou itens básicos para a proteção dos indígenas, mas fulano disse que torcia para ele morrer!”;
ou, quando alguma diferenciação programática aparece, ele confunde deliberadamente programa e identidade (“dizer que quer matar os adversários é radical, mas taxar grandes fortunas também é!”). O bom senso, o meio-termo entre as identidades radicalizadas, sempre acaba, assim,
se confundindo com o mesmo programa neoliberal de fundo. Como sair da armadilha? A chave, acredito, está em deixar de ser o polo subordinado da polarização assimétrica; em outras palavras, se a esquerda quiser voltar a ter um espaço para ocupar, precisará radicalizar no programa.
Em tempos de crise ambiental e rentismo predatório, um programa de transformação radical não é utópico, mas realista: chegamos a um ponto em que pequenos remendos não darão mais conta dos problemas. Mas tampouco adianta ter o programa e não conseguir convencer ninguém.
Por isso, é preciso também saber jogar melhor a polarização identitária (cismogênese simétrica) –– não deixando de se opor ao outro lado, mas tornando a própria identidade mais inclusiva. Não exigindo que os outros sejam como nós, mas fazendo-os ver que somos como eles.
Esta thread reúne ideias de um artigo que escrevi para a @revista_serrote e que vocês acham aqui: tinyurl.com/y9j8wxxs. O que me animou a fazê-la foi a descoberta que o @PosfacioF fez um podcast a respeito deste texto, que vocês acham aqui: anchor.fm/posfaciodofim/….
Um adendo à thread para responder ao questionamento do @pcazes aqui abaixo: não há um problema em adotar a ideia de "guerras culturais", quando movs negro, feminista etc. se tornam protagonistas de lutas por transformação social, reduzindo-os à meras pautas de "costumes"?
Há sim. Estou propondo usarmos "guerras culturais" como "categoria nativa" do discurso político, mas não trata-la como mera evidência empírica, como a ciência política faz. Há algo que é descrito por essa categoria; fazer a gênese desse algo nos permite entender tanto ele qto
a categoria que os agentes empregam para entendê-lo –– a qual, ao trata-lo como simples evidência empírica, é incapaz de dar conta da sua gênese. Fazer esse giro permite, me parece, reconhecer a importância política das pautas ditas "identitárias", ao mesmo tempo que criticar
um uso destas pautas que, condizente com o framing das "guerras culturais", as trata como se fossem meras questões de costumes separadas ou mesmo opostas a demandas estruturais (eg, a maneira como o Partido Democrata mobilizou a liderança histórica negra contra Sanders).
Se negros, muheres, LGBT+, indígenas etc. são hoje protagonistas de lutas por transformação, é justamente na medida em que não demandam reconhecimento dentro das estruturas, mas afirmam que a solução do racismo, patriarcado etc. exige necessariamente transformações estruturais
cujas implicações são elas mesmas universais. Esta dimensão estrutural, presente na formação destes movs nos anos 60-70, é justamente aquilo que o discurso de "guerras culturais", ao reduzir a disputa à mera demanda por reconhecimento e blindar a questão econômica, serve p apagar
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