Mas me parece que a conversa está pela metade. Ela tem a ver com o debate sobre cancelamentos. E a sobre a Lei das Fake News.
Um fio.
O debate sobre direitos individuais, idem.
A questão política é uma parte, também.
Todas são importantes. E é fundamental compreendermos que estamos perante um dilema raro.
Aliás... Estão faltando filósofos nessa conversa.
O ponto é justo
É manifestado por pessoas que provavelmente jamais foram canceladas.
Já fui algumas vezes. Tenho amigos... Aliás, principalmente amigas, que foram de forma pior
Não é uma experiência que dê para compreender sem ter vivido.
Entre nós jornalistas conheço alguns que entraram no tarja preta regularmente nos últimos anos por conta da vida em rede.
O que o cancelado vê não é isso. É a torrente. Os espertos saem do Twitter por uns dias.
Vc tem de ter frieza para não responder. Para não ler. Funciona como um bloqueio temporário.
Isto é novo no debate a respeito de liberdade de expressão.
A mistura de algoritmos que selecionam temas e os inflamam, o que gera mais volume, e determina sobre o que passaremos o dia discutindo.
Não é uma pessoa. É um software. Manipulável.
Mill e os seus leram Locke, leram os iluministas do século 18, olharam para a Europa da Revolução Industrial e repensaram.
Vivemos num mundo em que para um ponto de vista atingir milhões é questão de segundos.
Num, provocava reações reflexivas. Noutro, reações guturais.
No limite, a liberdade de expressão é um caminho para que totalitários ascendam ao poder e ponham fim à democracia.
Nós vivemos no mundo em que algoritmos de inteligência artificial definem sobre o que leremos.
As decisões destes softs nem seus autores sabem explicar.
Todos nascem de uma manipulação simples, porém pouco compreendida, dos algoritmos e dos apps de mensagem.
Com poucas contas chaves de alto volume, pessoas gerenciando dezenas de contas falsas e bots, determinam o debate público.
Não.
Para determinadas bolhas.
Em essência, fazem algo que jamais foi possível na história: falsificam o debate público.
Promovem artificialmente debates.
Chegam ao ponto de criar uma realidade paralela na qual a ciência sequer existe.
Aquele mundo do Mill, do mercado de ideias onde o amplo debate fará com que bons argumentos sobrevivam aos maus com o tempo?
Não existe mais.
E as plataformas se recusam a ter este debate.
Os algoritmos de Fb, Twitter e YouTube são manipulados, a praça pública é fraudada, e democracias as mais sólidas estão sendo tomadas de assalto.
É o paradoxo do Popper de um outro jeito. O problema não é o discurso. O problema são as regras da praça.
Compreendo o que dizem os ativistas de direitos nas redes quando se queixam da Lei das Fake News.
Aliás, concordo com quase todas as críticas sobre o texto da lei.
Na Ditadura, a dobradinha generais/Arena gerou uma estabilidade de quinze anos.
Os ditadores não sabiam promover vitórias eleitorais fraudando o debate público.
Não é inventado.
Não é um delírio.
O regime democrático está sendo violado.
Quem diz que as leis não prevêem o problema está inteiramente certo.
Não prevêem aqui, nos EUA, no Reino Unido, na Itália... E o problema existe.
Só parece democracia.
Parece democracia o suficiente para se utilizarem de argumentos que pertencem à liberal-democracia para permitir que, lentamente, possam extinguir o processo democrático.
Um número imenso de juristas diz que a decisão não é legal.
Não sou jurista. Conheço apenas o básico do Direito. Muito menos sou filósofo — mal conheço o básico de filosofia.
Não quero fingir que o problema é simples.
Não sei qual é a resposta.
Mas o problema é grande, é novo, e tem de ser discutido por inteiro.