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Acaba de sair na respeitada revista médica @TheLancetPsych um estudo sobre o uso do canabidiol (CBD) como tratamento para o uso abusivo de maconha.

Os resultados são interessantes, mas será que dá pra dizer que funciona mesmo?

Segue aí a #aulacordel pra entender melhor.
Foi publicado ontem no periódico 'The Lancet Psychiatry' um artigo cuja tradução do título é 'Canabidiol para o tratamento do transtorno do uso de cannabis: um ensaio bayesiano adaptativo de fase 2a duplo-cego, controlado por placebo e aleatorizado'.

thelancet.com/journals/lanps…
Eita que o negócio já complicou logo no título, né? Mas beleza, vou tentar explicar aqui o fundamental.

Pra começo de conversa, e se você não é seguidor habitual do perfil ou conhecedor da ciência da cânabis, o que é o tal canabidiol, ou CBD?

Pois é, o CBD é um canabinoide.
Os canabinoides são dezenas de substâncias (>100) que são produzidas pelas plantas do gênero _Cannabis_.

Eles são produzidos em vesículas resinosas chamadas tricomas, que na planta fresca se parecem com uns pelinhos.

O THC, que dá o barato, também é um canabinoide.
O THC, que também tem efeitos terapêuticos comprovados, parece estar ligado a certos riscos à saúde que podem atingir algumas pessoas que usam a planta, como o uso problemático e o risco de despertar sintomas psicóticos.

Como assim, mas existem pessoas que se viciam em maconha?
Bem, vamos evitar aqui o termo 'vício', que tem sentido muito mais moral do que técnico.

Mas sim, estima-se que em torno de 10 a 15% dos usuários de maconha podem desenvolver dependência ou uso abusivo, o que hoje nós psiquiatras chamamos de transtorno do uso de cânabis (TUC).
Esse é um número muito menor do que outras drogas como álcool, heroína, crack/cocaína ou tabaco, e pessoas com esse problema de saúde ainda procuram pouco os serviços de tratamento - apesar deste número estar aumentando. Porém, é isso: o problema existe.
Apesar de outros tipos de uso problemático terem como opções de tratamento o uso de medicamentos (tabaco, opioides, álcool) esse não é o caso da maconha. O tratamento é basicamente psicoterapia.

O surgimento de opções farmacológicas de tratamento seria muito bem-vindo, então.
O estudo não permite ainda dizer que o CBD trata o TUC. Ele é ainda um estudo de fase 2, cujo objetivo é investigar efeitos colaterais, a dose terapêutica e a eficácia inicial em uma amostra menor. Eles só acontecem depois da fase 1, que são testes em voluntários saudáveis.
Como as pessoas que estão acompanhando os progressos da vacina para covid-19 já sabem, para que fármacos sejam aprovados são necessários estudos multicêntricos de fase 3, com muitos pacientes, que investigam a efetividade e a segurança em grande escala.
O que esse estudo fez foi testar doses altas de CBD e comparar com uma substância inerte (por isso foi 'controlado por placebo'). Nem pacientes nem os pesquisadores sabiam o que os participantes estavam tomando ('duplo-cego'), e isso foi decidido por sorteio ('aleatorizado').
O estudo foi 'adaptativo' porque se começou com doses diária de CBD de 200, 400 e 800 mg, além do placebo, mas na primeira análise se percebeu que 200 mg não tinham eficácia, e o estudo teve uma nova entrada de participantes somente nos grupos placebo, 400 mg e 800 mg.
Por fim, o estudo foi 'bayesiano' porque usou uma técnica estatística baseada que é fundamentada em um teorema sobre probabilidades criado por um matemático e pastor inglês chamado Thomas Bayes.

pt.wikipedia.org/wiki/Teorema_d…
Vale ainda lembrar que no estudo todos os grupos de pacientes (no total, 82), tenham tomado CBD ou placebo, passaram por seis sessões de aconselhamento para TUC. Todos eles optaram por se tratar voluntariamente. Foram coletadas informações por formulários e testes de urina.
Os resultados do estudo, após quatro semanas, indicaram o seguinte, resumidamente:

* Tem tomou CBD não teve maior probabilidade de ter efeitos colaterais do que quem tomou placebo.

* Quem tomou CBD (qualquer dose) teve menor probabilidade de usar maconha.
Como já dissemos, isso é parte de um processo. Agora o estudo de fase 3 é necessário para sabermos se a redução de uso em uma grande população é suficiente para estabelecer um novo tratamento, além de se saber mais sobre a segurança do CBD (que até agora parece ser alta).
Eis então a situação: existe uma grande chance de que um componente extraído da própria maconha possa ser usado para tratar o uso problemático da mesma droga. Isso dá o que pensar, não dá?

Mais do que demonizar as drogas, precisamos estudá-las em seus malefícios e benefícios.
Agora vejam só a situação política do Brasil nesse contexto todo.

Em dezembro, uma reunião da Comissão de Entorpecentes da ONU vai votar uma recomendação da Organização Mundial da Saúde a favor da reclassificação da maconha e dos canabinoides nas leis internacionais.
Considerando a inquestionável evidência científica acumulada de que a maconha, o CBD e até o THC têm propriedades terapêuticas, a OMS recomendou que a maconha seja retirada da lista em que está incluída, que é a de drogas consideradas sem qualquer uso medicinal ou terapêutico.
Mas o Brasil enviará para essa reunião um representante que já adiantou que votará contra as recomendações da OMS, justificando-se em uma nota técnica que usa um verniz de Ciência para acenar para os grupos conservadores das teorias conspiratórias sobre drogas e os 'comunistas'.
A maconha está longe de ser inócua, e tampouco é a cura de todos os males.

Porém, ignorar o seu componente terapêutico e tentar manter uma regulação draconiana sobre ela tendo como base o preconceito é cientificamente e moralmente inaceitável.

E você, o que acha disso?
Aproveito para recomendar a matéria que a Constança Tatsch (@constatsch) fez no @JornalOGlobo sobre esta pesquisa, com participações do @FilevR e deste que aqui vos escreve.

oglobo.globo.com/sociedade/coro…
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