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O artigo na @folha deste domingo afirmando que é intelectualmente desonesto relacionar o liberalismo ao fascismo ou está supondo uma noção extremamente ingênua do que são conceitos ou, sinto dizer, está sendo desonesto.
O argumento é basicamente o seguinte: eis o conceito de liberalismo; eis o conceito de fascismo; há elementos do conceito de liberalismo que estão em contradição com o conceito de fascismo; logo, não pode haver qualquer relação entre os dois.
O problema é óbvio: um conceito não é apenas sua definição, mas seus usos. Por isso, há mais de um conceito de liberalismo.

Não quero dizer com isso que há mais de uma definição de liberalismo, ou que o consenso entre autores que se definem como liberais não seja absoluto.
Isto também é verdade, mas acho que podemos aceitar que há suficiente em comum entre estas definições para entendermos a que alguém se refere quando usa a palavra “liberalismo”.

A questão é outra.
Toda grande ideia política está inscrita na história pelo menos duas vezes: uma vez como ideia, em suas variações e evolução, e outra vez como corrente política ou movimento histórico que reivindica aquela ideia. É neste sentido que há (no mínimo) dois conceitos de liberalismo.
O que este argumento faz é, quando apertado sobre a relação do segundo conceito de liberalismo com o fascismo, responder a partir do primeiro: "é claro que não há relação, olha aqui a definição de liberalismo".
Eu acredito piamente que seria um reducionismo bobo dizer que as ideias uma tradição tão rica, que nos deu gente como Thomas Jefferson, JS Mill e John Rawls, se resumem a um disfarce que as classes proprietárias usam para defender a propriedade privada e a liberdade de mercado.
O problema é que, do ponto de vista do segundo conceito –– o liberalismo como força política ––, não faltam exemplos históricos de autoproclamados liberais jogando fora liberdades individuais, competição democrática, checks & balances etc. para defender apenas estas duas coisas
na hora em que o calo aperta. A começar por nosso amigo Hayek no Chile dizendo que preferia sacrificar a democracia temporariamente a, mesmo que temporariamente, perder a liberdade [de mercado] e que “antes um ditador liberal que um governo democrático sem liberalismo”.
A partir daí, tem dois caminhos diferentes para você se defender. Você pode dizer que tais opções, embora duras, eram inevitáveis diante de “escolhas difíceis”. É o que tanto Hayek quanto Milton Friedman fizeram no caso do Chile:
Segundo eles, aquilo que teria acontecido com o Chile caso Allende continuasse seria pior, logo o golpe e a “ditadura transicional” de Pinochet eram defensáveis.
Você pode defender isso. Mas aí você não pode fazer de conta que não há nenhuma relação entre o liberalismo como corrente histórica e fascismo (ou autoritarismo, violência política etc.). Porque você está literalmente admitindo que, no passado, já houve liberais que
avaliaram estes como males menores –– e que no futuro, portanto, isto poderia acontecer de novo.

Sua outra opção é recuar para o primeiro conceito de liberalismo e dizer que, quando apoiaram Pinochet, Hayek e Friedman não estavam sendo liberais “verdadeiros”.
É a falácia lógica conhecida como “no true Scotsman”: dependendo da definição que você dá de “escocês”, é possível argumentar que um ruivo chamado Angus, nascido em Glasgow, que come haggis e Mars frito, toma uísque e toca gaita de fole não é um escocês "verdadeiro”.
Você pode defender isso; mas é desonesto. E você nunca mais vai poder falar do vínculo histórico entre marxismo e autoritarismo –– já que, pela sua própria lógica, seria perfeitamente possível demonstrar que o bloco Soviético nunca teve qualquer relação com o marxismo.
[Para quem quiser ler mais sobre a relação de Hayek com o Chile de Pinochet, recomendo este texto
sci-hub.tw/https://doi.or… e o artigo de Karin Fischer no livro The Road from Mont Pèlerin, de Philip Mirowski e Dieter Plehwe.]
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