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O Genocídio da Unión Patriótica: uma memória de toda esquerda latino-americana

Vocês já se perguntaram por que a esquerda nunca chegou no poder na Colômbia? Ou por que pouco ouvimos falar da política colombiana no Brasil? Será que podemos aprender algo de lá? 👇🏾 Image
Em geral, o discurso oficial colombiano apresenta o país como "a mais estável república democrática da América Latina". Segundo essa narrativa, comparada aos seus irmãos continentais, a Colômbia teria apresentado períodos curtos de autoritarismo e ditadura. 👇🏾
Ou seja, a Colômbia seria permeada por uma estabilidade institucional invejável, com poucas quebras constitucionais e golpes de Estado. No entanto, um olhar crítico da história do país é suspeito dessa narrativa e das suas respectivas funções ideológicas. 👇🏾
Particularmente para os setores populares e de esquerda, a história colombiana é recheada de extermínios e perseguições políticas sistemáticas que remontam aos primórdios do estado-nação, as quais explicam a hegemonia à direita e anti-esquerda na política contemporânea. 👇🏾
Dois exemplos. No final do século XIX, o Partido Liberal é disputado por forças aristocráticas e populares (negros, campesinos, operários). A facção popular cresce no decorrer do período, chegando a postular o poder do país, tendo como pauta prioritária a questão fundiária. 👇🏾 Image
Porém, um conluio entre liberais aristocráticos e o Partido Conservador realiza um golpe político contra os liberais populares. Essa facção é perseguida e exterminada. Como consequência, é fechado o ciclo liberal para iniciar o período da Hegemonia Conservadora (1886-1930). 👇🏾
Segundo exemplo: mesmo após uma guerra civil, o poder nas mãos dos conservadores e o domínio aristocrático no Partido Liberal, nas décadas de 20 e 30 começam a surgir novamente facções liberais populares. Essas, já assumidamente de esquerda e com ideais socialistas. 👇🏾
O liberalismo de esquerda se galvaniza na figura de Jorge Eliécer Gaitán, líder popular que advoga por uma reforma social estrutural na Colômbia e o combate à aristocracia política. Numa disputa intensa dentro do P. Liberal, Gaitán se torna candidato à presidência em 1948. 👇🏾 Image
Gaitán foi provavelmente um dos maiores líderes populares de toda a Am. Latina na primeira metade do século XX. No entanto, em abril de 1948, é assassinado ao sair do seu escritório, em um magnicídio arquitetado pela CIA, dentro da sua política de bloquear a esquerda na AL. 👇🏾 Image
O assassinato de Gaitán é um evento de ruptura na história colombiana. Logo após a sua morte, o centro de Bogotá é destruído por populares em protesto. Como resposta, uma repressão política é montada e a situação de violência pelo país se aprofunda dramaticamente. 👇🏾 Image
Naquele momento, o evento significa também o bloqueio político a qualquer mudança política à esquerda na Colômbia. Após sua morte, seguem a Ditadura de Rojas Pinilla (53-57) e a Frente Nacional (58-74), conluio entre os Partidos Liberal e Conservador na alternância do poder. 👇🏾
Diante do impedimento da participação da esquerda no jogo institucional, com o banimento do Partido Comunista e a perseguição dos liberais radicais, a tática de guerrilha entra em cena. Esse impasse só mudaria entre 70-80, com o início da abertura democrática na AL. 👇🏾
É neste período, no ano de 1985, que surge a Unión Patriótica, partido formado por ex-guerrilheiros, comunistas, intelectuais e lideranças populares da Colômbia. Confiando no clima de abertura política, parte da esquerda decide novamente voltar ao jogo institucional. 👇🏾 Image
Conclamando por uma convergência em torno de reformas estruturais e pela paz na Colômbia, a UP vai crescendo por todo o país. No entanto, a organização não esperava que o chamado à democracia se tornaria justamente uma armadilha política contra a esquerda. 👇🏾
Desde o surgimento, vai crescendo uma política de assassinatos sistemáticos contra lideranças da UP, a qual ganharia contornos dramáticos e absurdos. A despeito disso, nas eleições de 1986, com Jaime Pardo, a UP alcança a maior votação presidencial da esquerda na história. 👇🏾 Image
Além das pautas de esquerda, Jaime denunciava a aliança entre a aristocracia, o narcotráfico e o paramilitarismo. Em 1987, com sua liderança crescendo por todo o país e o potencializando para as próximas eleições, ele é assassinado ao regressar de sua fazenda com sua família. 👇🏾 Image
A morte escandalizou um país que convive historicamente com massacres. Era uma mensagem clara à UP. No entanto, o Partido não abaixou as guardas e seguiu fazendo política, aprofundando suas bases. Em 1990, tem como presidente o senador comunista Bernardo Jaramillo. 👇🏾 Image
Orador, intelectual e dirigente brilhante, Jaramillo amplia as alianças da esquerda, facilita a desmobilização de guerrilhas e desponta como grande liderança política no início dos 90. Mas sua voz seria calada aos 34 anos, em março de 1990, em outro magnicídio. 👇🏾 Image
Além de Jaramillo, outros três candidatos presidenciais foram assassinados nessas eleições, entre eles Luis Carlos Galán, sensação política do momento e grande renovação do Partido Liberal, e Carlos Pizarro, do M-19 (guerrilha recém desmobilizada), fuzilado em um avião. 👇🏾 Image
O extermínio não parou aí. Em 94, Manuel Cepeda Vargas, secretário geral do P. Comunista e líder da Unión Patriótica, é assassinado por capangas em Bogotá.

Na mesma cidade, em 1996, uma das únicas líderes sobreviventes da UP, Aida Avella, sobrevive a um atentado de bazuca.👇🏾 Image
Então vereadora por Bogotá, Aida teve que se exilar do país por 17 anos.

Por cerca de 20 anos, 6.613 militantes da Unión Patriótica foram assassinados (2 candidatos à presidência; 5 senadores; 11 deputados; e 109 vereadores), no que se estabeleceu como um genocídio político. 👇🏾
A história da Unión Patriótica deveria ser de conhecimento público de qualquer cidadão latino-americano, pois é uma memória que nos ensina os significados e os usos das palavras "democracia" e "normalidade institucional" na região. Mas ela revela outras questões mais. 👇🏾
Primeiro: o extermínio sistemático de militantes políticos significa um extermínio geracional e o bloqueio vital de renovação da esquerda no país. Imaginem que todas as suas referências políticas no Brasil comecem a desaparecer de uma hora para a outra, o que ocorreria. 👇🏾
Além de ideias, qualquer espectro político depende de pessoas. Pessoas que não se tornam militantes e quadros de uma hora para a outra, mas sim em anos. O genocídio da UP significou e significa a impossibilidade de uma esquerda (e da democracia) na Colômbia por anos. 👇🏾
Segundo: massacres políticos são uma mensagem. Como minha namorada e outros colombianos falam, o genocídio da UP foi um aviso para o restante da população: não se engajem em processos de cidadania e luta política, pois vocês terão o mesmo destino. 👇🏾
Ou seja, não só quadros políticos eram os alvos, mas o restante da população. A mensagem era uma deseducação para a cidadania e para qualquer tipo de engajamento progressista. Ser de esquerda era colocar um alvo nas costas. 👇🏾
Terceiro: no contexto de "redemocratização" e novo pacto constitucional, o extermínio da UP garantiu uma transição neoliberal, em que nenhum dos gargalos históricos do país foi atacado. Mais: manteve a posição internacional da Colômbia como país subserviente aos EUA na AL. 👇🏾
Quarto: o genocídio trata-se também de uma política de silêncio. O calar de vozes não significou a impossibilidade da esquerda chegar ao poder, tendo votações significativas somente a partir de 2006, mas também um domínio discursivo da direta a nível interno e internacional. 👇🏾
É isso que permite declarações como a do atual presidente Ivan Duque, que chamou Aida Avella (a do atentado de bazuca) de uma "velha" qualquer, demonstrando seu compromisso com a desmemorização do país.

semana.com/semana-tv/vick…
Permite também o silêncio da mídia internacional sobre a permanência de massacres de líderes populares, campesinos, negros e indígenas nas áreas alvos do paramilitarismo e de multinacionais. Por ex: em 2016/17, 120 líderes foram assassinados em 03 meses.

eltiempo.com/colombia/otras…
E para nós brasileiros em 2020, o que a memória do Genocídio da Unión Patriótica ensina?

Primeiro, acredito que realmente temos que retomar com mais afinco o estudo e a análise da América Latina e uma prática política conectada a essa compreensão. 👇🏾
Segundo: nós brasileiros progressistas da Nova República temos o costume de pensar que na política institucional sempre existirá, ainda que mínimo, espaço para a esquerda. A história da UP diz que não. 👇🏾
Mais do que isso: ela demonstra como é possível aniquilar qualquer tipo de viabilidade política da esquerda e dos setores populares sobre uma falsa aparência de democracia. Que a própria institucionalidade pode ser utilizada para legitimar e aprofundar esse aniquilamento. 👇🏾
Particularmente, acredito que temos que começar a fazer análises de conjuntura da esquerda no Brasil trabalhando com a real possibilidade de que, caso não revertamos o processo em curso, podemos ser reduzidos a uma insignificância política nos próximos anos. 👇🏾
Análise de conjuntura conectada a uma nova práxis política que reconheça a possibilidade desse desaparecimento.

Terceiro e por último: o silêncio sobre esse genocídio e sobre a "democracia colombiana" no Brasil ilumina a ideologia que paira sobre o país. 👇🏾
O que quero dizer com isso: que há uma hegemonia imperial na discussão de geopolítica no Brasil, capitaneada pela direita e não contra-atacada pela esquerda. Discutimos se há democracia em Cuba ou Venezuela, mas somos incapazes de falar, por exemplo, de histórias como a da UP. 👇🏾
Falamos muito de teoria da ferradura, mas temos que ampliar nosso instrumental (histórico e elucidativo) para retirar o poder de definição do que é "democracia", "cidadania", "autoritarismo" e "ditadura" da mão da direita e dos liberais. 👇🏾
Impressiona-me, por exemplo, que não trazemos a Colômbia para o centro do debate: país dominado historicamente pela direita, campeão de violações de direitos humanos e com o maior número de desterrados internos do mundo, sob a égide, esse sim, de um narcoestado paramilitar. 👇🏾
A ideologia imperial no Brasil é forte e nós mesmos, militantes de esquerda, somos permeados por ela, ainda que resistamos. Acredito que olhar mais detidamente para a história do continente é sempre potente para não esquecermos o radicalismo que essas terras exigem. 👇🏾
Indicações:

Genocídio da UP:
- Tese de Franco Alejandro López Marin na USP:
teses.usp.br/teses/disponiv…

- Este artigo de Ivan Cepeda Castro:
corteidh.or.cr/tablas/r24797.…

Liberalismo popular e esquerda na Colômbia:
- Este artigo de John Green:
jstor.org/stable/1007713…
Sobre o Genocídio, há um famoso documentário chamado "El Baile Rojo" (nome, inclusive, dado ao programa de extermínio sistemático dos membros da UP):

Threads sobre países latino-americanos infelizmente não rendem muito por aqui. De qualquer forma, acredito que pode interessar o público de vocês: @SamuelSilvaFB, @_makavelijones, @raufitoo, @rbcgaia, @DimitraVulcana, @safbf, @karenanisiaa, @davidgomesrio.
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