O dentista veio sorridente, me cumprimentou e pediu para sentar na poltrona - e eu sentei.
E, mal vi, ele chegou com uma injeção pequenina, dizendo:
- Abra bem a boca.
Mas era impressão minha, com certeza. Talvez o medo de tirar os sisos mudasse minha perspectiva sobre aquele homem sempre tão gentil anteriormente.
Veio a furada, a boca adormeceu, fiquei grogue.
Não conseguia entender bem o que diziam, mas achei ter escutado um “pede pra ele entrar...”
E então, dois sumiram e ficamos eu, desacordado, e o novo vulto, mais forte e alto do que o dentista.
Também não se vestia de branco. Vestia vermelho, como se fosse um diabo.
E se debruçou sob mim.
“Larga meu pescoço!”
“É a boca! É o dente!”
Eu pensava, enquanto aquele homem apertava minha garganta sem me dar chance de defesa.
“Pára! Eu vou morrer.”
Lembro do rosto dele, terrível, sorrindo malvado, feliz; e das minhas pernas se debatendo.
Os braços e pernas mexiam em simples espasmos.
E o homem sussurrava, quase babando: “morre, maldito”
Ele se vingava de mim e eu nem sabia a razão.
E morri. Ao fim, morri.
Num pulo, eu estava novamente na cadeira, com o dentista e sua assistente me segurando:
- Calma, cara.
Eu não conseguia falar, anestesiado na boca, mas estava vivo.
Enquanto ele falava, eu procurava freneticamente pelo homem de vermelho pelo consultório.
- É reação da anestesia. Dá uma primeira queda, depois desperta. Tem gente que até sonha.
Então, eu teria tido um pesadelo?
“Adeus, sisos”, eu pensava.
Mas, antes de iniciar, uma nova seringa surge.
- Vou te dar uma dose um pouco maior, pra não termos mais surpresas.
E nem consegui concordar.
- Mas é normal essa reação, sabe? [fazendo força]
- Huhum [resmungo]
- Ter esse tipo de sonho, até pesadelo [mais força]
- Huhum
Seria impressão minha, ou ele estava cada vez mais sentado no meu peito?
- O problema é quando vem pesadelo, heheh
- Huh
- Principalmente quando é com o homem de vermelho, hehehe
A assistente também tinha desaparecido, e eu estava só, com o alicate preso na boca, sem sentir nada e incapaz de me mover.
- Ele é assustador, né? O homem de vermelho? - disse a voz que vinha bem no meu ouvido.
E, nessa hora, algo cortante e fino, um bisturi talvez, passou veloz pelo meu pescoço.
Senti o jato de sangue voar. Percebi a surpresa no homem, antes todo branco, agora manchado de vermelho.
E eu não era capaz de me mover, de gritar, de nada. Só sentia meu sangue se esvair, junto com minha vida!
- Porra, Tanto! Eu nem tenho roupa extra, hehehe
- Vai, Vai!
- Pronto! Foi.
E então alguém me chamava.
Era a morte, eu tinha certeza, confirmando a passagem do meu espírito.
Novamente, no consultório, o dentista me olhava rindo, comentando com a assistente e comigo:
- Cara, você apagou legal, hahahaha
- E olha que o senhor usou a dose mínima - disse a mulher.
E eu tentava rir, feliz por estar bem e vivo, e sem sisos.
Minha boca, completamente anestesiada, talvez sorrisse, acompanhando o clima de brincadeira que reinava na sala.
Um pesadelo enorme que tinha acabado.
Sentei e esperei mais um pouco.
- Olha, foi tudo lindo. Os dentes saíram facinho, poucos pontos e sangue. Não deve ficar inchado nem muito doído.
- Eu te levo até a porta. Vamos.
E assim andei, escorado no dentista que me segurava e, na outra mão, trazia a caixa com meus dentes mortos.
- Segunda-feira você deposita o dinheiro na minha conta. Sem pressa, melhora...
- Você não vai dirigir, né? Vai pegar táxi? Mas sozinho? Não, cara, você não tem condições. Não, de forma alguma. Sou responsável por ti. Você não vai embora, hehehehe
E, novamente, aquele maldito tom maligno na voz dele.
“Cara, por favor, me deixa ir embora... eu não aguento mais isso...”
E ele, enxugando minhas lagrimas, com a outra mão me empurrou de volta ao sofá.
Do nada surgiu mais uma seringa e eu só chorava muito.
Se virando para a assistente, ele então falou:
- Traz o meu jaleco vermelho, por favor? Vou recomeçar.
Sem conseguir reagir, grogue e sem qualquer instinto, anestesiado por não sei quantas doses, fui colocar novamente na cadeira.
- Só falta mais 4 dentes, hehehehehe
Sem sentir minha boca, sem sentir nada, vi que quase todos os meus dentes jaziam um pote branco, com água e sangue.
- Depois de tirar os últimos, vou acabar de vez com isso...
“Sim... por favor... acaba logo com isso...”
Acordei horas depois em casa, bem, íntegro, com todos os dentes na boca, menos os 4 sisos que jaziam ao meu lado.
- Finalmente, amor...
- Caramba, a gente teve que te carregar do consultório. Ainda bem que eles tinham meu número. Você não deu trabalho, mas apagou legal.
E eu só virei na rede e percebi que jamais esqueceria esse dia.
Usem fio dental.
Fim
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