Todo o respeito a historiadores que estão lá, voltando às fontes do período ptolomaico no Egito para discutir se Cleópatra era negra ou não.

Mas vocês sabem que o debate sobre racialização tem menos a ver com a antiguidade e mais com a contemporaneidade, né?
A racialização das representações históricas é um jogo praticado na era Moderna europeia e que se torna fundamental para a construção de branquitude ocidental desde a ópera Aida, de Verdi.
Cito essa ópera porque talvez ela tenha sido a primeira representação branca do Egito Antigo na cultura de massas europeia (se é que dá para ler a ópera como cultura de massa), mas vá lá.

8 anos depois da apresentação da peça, em pleno Egito em 1871, o Pashá Ismail, ainda disse:
"Meu país não faz mais parte da África; ele agora é parte da Europa".

Também pudera. A ópera narrou a história de amor do general egípcio Radamés com a princesa etíope Aida.
Apesar de ser uma rainha etíope na concepção de Giuseppe Verdi, Aida foi interpretada originalmente por Antonieta Pozzoni Anastasi, uma soprano italiana branca:
Em 1872, na estreia europeia, Aida foi interpretada por Teresa Stolz, soprano nascida na Boêmia, que na época pertencia ao império Austríaco. Stolz foi o rosto de Aida até 1876.
O problema da representação racializante do passado egípcio, ainda que fictício, na estrutura da ópera de Verdi alimenta polêmicas ainda hoje. Nova montagem da peça e, mais uma vez, uma soprano branca escolhida para ser Aida:

observer.com/2020/02/anna-n…
Nem vou me alongar. Aida, ao contrário de Cleópatra, é um personagem puramente ficcional. E marcada como etíope no texto literário.

Mas ambas passaram pelo embranquecimento como representação do Egito Antigo, voltado para o consumo da cultura ocidental.
Tem outros casos famosos no cinema, como comentei esses dias. Mas a origem talvez seja efetivamente a ópera de Verdi.
Assim, mais importante que saber se Cleópatra era branca ou negra, acho que talvez mais significativo seja se perguntar: por que a representação estética da branquitude no Egito Antigo é, ainda hoje, tão normativa?
PS: Para não me acusarem de injustiça, Shakespeare representou sua Cleópatra com "uma fronte escura" ("a tawny front"). O velho Bill não era historiador, isso foi pura "licença poética".

Impensável, creio eu, para os séculos XIX, XX...e XXI.
PS2: "Cultura e Imperialismo", de Edward Said, para ver essa discussão sobre a Aida e o sonho da branquitude do Egito Antigo.

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"Puxa, mas como você pode reivindicar a Revolução Chinesa, olha o tanto de gente que morreu".

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Bom, é complexo. Eu reconheço que os erros cometidos ao longo da Revolução são terríveis, com alto custo humano. Mas reconheço também que... Image
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sci-hub.st/https://www.js…
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27 Sep
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26 Sep
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E acreditem, isso não é novidade.

g1.globo.com/google/amp/cie…
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cartacampinas.com.br/2019/12/as-inc…
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bbc.com/news/magazine-…
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