Bom dia. Prometi fazer um fio sobre os fanatismos políticos que assolam o Brasil. Serão 3 fanatismos que tentarei analisar: os "camisa de força", os "sossega leão" e os "psicanalista, já!". Segue o fio
1) Comecemos pela definição do que entendo ser fanatismo político. São aqueles que, a partir de uma ideia-força simplista, interditam qualquer dúvida. A dúvida destrói a crença e, portanto, é sinal do demônio, como o riso era vistos, na Idade Média, como obra de Lúcifer
2) A interdição da dúvida tem o efeito, para o fanático, de impedir que a realidade se imponha, destruindo a construção de seu mundo paralelo. Como se percebe, o fanatismo tem relação com um trauma ou profundo medo que o joga num armário escuro, quente e acolhedor
3) O primeiro caso é o dos "camisa de força", os bolsonaristas. É o caso mais grave e esdrúxulo da política tupiniquim. Raramente a história do Brasil registrou algo assim, tão fanático e histérico. Quais hipóteses explicariam esse pessoal? Comecemos pelo ressentimento.
4) Há registros, desde o anos 1940, de crescente ressentimento em relação à democracia representativa. György Lukács escreveu um livro a respeito, "O Assalto à Razão". Um percurso da insegurança ao fanatismo que levou ao nazismo
5) Reich também escreveu algo a respeito da insegurança social - e falta de perspectiva - levar à busca do Pai autoritário e organizador do mundo.
6) Acredito que o mundo sem perspectiva orienta os "camisa de força". Mas, há ainda um outro aspecto muito analisado desde os anos 1970: a sociedade do espetáculo.
7) Christoph Türcke aprofunda a sugestão de Debord com seu livro "Sociedade Excitada". Numa sociedade inundada de informações e redes de comunicação, nosso olhar passa a ser treinado para enxergar o inusitado, o espetáculo.
8) Assim, os bolsonaristas "camisa de força" se excitam e são excitados pelo exibicionismo verborrágico. Qualquer bronco insolente se destaca no zoológico virtual que nos sacode diariamente. Basta gritar, transgredir, lacrar, se postar como o animal alfa.
9) Há, ainda, relação com a cultura estamental que atormenta nosso país e que tem raízes na escravatura. Desde lá, instalou-se na nossa subjetividade uma estrutura mental que nos divide em castas. Trata-se de uma distinção que confirma a elite. Elite como distinção social.
10) A casta se distingue pelas vestimentas, pelos acessos aos bens e poder, mas, também, pelos lugares cativos. Shopping center, aeroportos, refeições gourmetizadas são lugares cativos das castas superiores. As castas inferiores podem existir, mas não podem frequentar os templos
11) Neste sentido, a rua pode ser uma concessão para os "intocáveis" residirem. Causa constrangimento, mas, "dalit" até pode. O que não pode é estar num aeroporto ou shopping.
12) Assim, numa sociedade de cultura estamental, marcada pelo espetáculo e excitação e pela revolta dos desqualificados, há um caldo de cultura razoável para canalizar o ódio, a revolta, a empáfia. Um passo para o fanatismo
13) Na sequência, temos os "sossega leão". São superativos, hiperexcitados e idólatras. Gente que precisa se espelhar numa referência externa - seja uma personalidade, seja um livro de bolso que é tratado como texto sagrado. Parte é arrivista em busca de janela de oportunidades
14) No Brasil, envolve ciristas e morenistas. A lógica política é a da bolha eterna que denuncia um mundo em declínio ou um clima pré-revolucionário que terá como líder ..... o seu ídolo. A idolatria gera um discurso agressivo e definitivo porque, afinal, "Ele é capaz"
15) A crítica ao "texto sagrado", às apostas no futuro ou ao ídolo de plantão são percebidos como ataque à sua própria existência. O ídolo, afinal, não acredita em si e, por este motivo, transfere seu projeto para o ídolo construí-lo. Transferência que dá razão à sua própria vida
16) Chegamos, então, no caso dos "Psicanalista, já!". São aqueles acometidos pelo estresse pós-traumático que emergiu da queda de Dilma Rousseff, prisão de Lula e eleição de Bolsonaro. Foi demais para a cabeça dessa gente. Arriaram.
17) Percebam que há um elemento de fanatismo desde antes da queda de Dilma. O mundo conquistado pelo lulismo se apresentava como o Paraíso na Terra. O fim da história. A Porta da Esperança que se abria. A luta de classes teria evaporado pela bondade e genialidade do líder
18) A partir daí, surgiram toda espécie de teoria conspiratória e projeções do Apocalipse. Deste pote até aqui de mágoa já surgiram pérolas como "não haverá eleição", "o golpe militar está em marcha", a "maior ameaça da história". Um cantilena sem fim.
19) O mundo tem que ser emoldurado por esta leitura épica para os "psicanalista, já!" porque, caso contrário, terão construído um castelo de areias que foi derrubado na primeira lufada. É preciso construir uma narrativa espetaculosa, começando por uma trama em 2013
20) A narrativa começa com 2013 sendo uma trama internacional da extrema-direita, esquecendo a vitória de 2014 porque fica meio deslocado da narrativa, retoma com uma ofensiva da direita em 2015, esquecendo das manifestações da esquerda e greve geral de 2017, e assim por diante
21) Existe, ainda, uma derivação desta leitura apocalíptica que é a "você não gosta de mim, mas sua filha gosta". Trata-se de um certo narcisismo político onde tudo o que está fora da bolha é errado e tem que ser desprezado.
22) Assim, chegamos ao final desta proposta de interpretação dos tantos fanatismos que invadiram recentemente nosso país. Quero deixar claro que já passei por todas essas fases que citei. Daí o deboche. Tudo passa. Mas, temos que saber enfrentar nossos demônios. (FIM)

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1) Zygmunt Bauman é o autor que alertou para o mundo das celebridades efêmeras que o século XXI gerou e, muitas vezes, substitui a liderança social. Para o autor: "as celebridades do nosso tempo são pessoas comuns que são percebidas como pessoas comuns"blogacritica.blogspot.com/2014/10/conver…
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