Dia desses eu falei sobre como imóveis se tornaram um problema complexo na sociedade contemporânea. Acho que vale explicar melhor o porquê disso.
No caso brasileiro, devido ao trauma da hiperinflação e confisco, os imóveis se tornaram um método básico de proteção do patrimônio, logo, a dinâmica aí é um pouco diferente.

Porém, o resultado é parecido: no primeiro mundo, também se tornou um investimento privilegiado pelo...
... grande público, pela promessa de "retorno garantido".

Obviamente, não deveria haver retorno garantido em nada. O preço de qualquer ativo deveria variar de acordo com a oferta e demanda.

Porém, isso só funciona em uma situação de perfeito livre-mercado, o que está longe de..
... ser o caso dos imóveis.

Os gurus de finanças têm atacado esse tipo de investimentos, argumentando (com alguma razão) que o retorno no mercado financeiro seria melhor.

Porém, há uma série de fatores que realmente tornam o investimento em imóvel diferente (e vantajoso em...
... alguns casos).

O primeiro dele é que é um investimento com alavancagem. Logo, se o valor do imóvel cresce "apenas" 6% ao ano, o seu retorno pessoal pode ser bem maior, caso você tenha colocado apenas 5 a 10% de entrada (relativamente comum no primeiro mundo).
Em uma situação normal, essa vantagem seria equilibrada com o risco de perdas aceleradas, mas décadas de políticas governamentais têm explicitamente impedido isso de ocorrer.

Em uma situação de alavancagem geral, o principal determinante do preço é o custo de financiamento...
... isto é, a taxa de juros. Como os governos tem mantido essas taxas extremamente baixas, eles estão também inflacionando os preços dos imóveis.

Mas isso é só uma dimensão da coisa: os governos locais também estão sempre atuando para restringir a oferta de novos imóveis...
... por meio de barreiras para impedir a densificação e expansão urbana. Com menos oferta, o preço continua subindo.

Essa subida contínua e alavancada gerou uma distorção patrimonial enorme. Quem comprou imóveis bem antes de 2008 ou logo depois provavelmente tem um patrimônio..
... maior do que quem tem o dobro de renda (falo do primeiro mundo, é claro).

Esse efeito ainda é maximizado por dois outros fatores.

O primeiro é que esses países tem impostos de rende progressivos bem altas, mas geralmente isentam os ganhos de capitais em imóveis.
Logo, um sujeito que ganhava 80k/ano em 2010 e comprou um imóvel em uma região central aqui no Canadá, provavelmente acumulou uns 400k em patrimônio na última década. É um impacto muito maior do que ter dobrado a renda, já que o imposto de renda comeria quase metade dela.
O segundo efeito é que o retorno no imóvel é uma espécie de "retorno no consumo". Quem comprou casa melhor, teve um retorno melhor. Ou seja, quem consumiu mais, ganhou mais.

Isso obviamente gera um incentivo para gastar cada vez mais, já que psicologicamente você não está...
... perdendo nada (afinal, se você coloca seu dinheiro na bolsa, você não usufrui do dinheiro enquanto ele está lá).

Obviamente, isso é uma dinâmica equivalente a uma bolha. Porém, é uma bolha que prendeu 80% da população do primeiro mundo. Logo, nenhum governo vai querer que...
... ela estoure no seu colo.

Logo, a maioria da população se tornou especuladores de alto risco (uma receita perfeita para falhas sistêmicas)

Porém, não dá para simplesmente ficar fora da bolha, porque ela se tornou tão grande que ela afeta também a oferta de aluguéis.
Todo mundo precisa, afinal, de um lugar para morar. Logo, você precisa decidir entre comprar um pedaço da bolha ou procurar alugar para se isolar dela.

Porém, há paradoxalmente uma escassez de boas opções para aluguel, porque todo o retorno está em produzir imóveis para vender.
Em uma situação onde todo mundo pode comprar e onde o retorno vem dos ganhos de capital não-taxado (valorização do imóvel pessoal), não há incentivos para aumentar o estoque de imóveis para alugar para terceiros (já que os clientes potenciais são poucos e o retorno será taxado).
O resultado é que o mercado de aluguel existente se volta para as poucas pessoas que não iriam comprar:

(i) executivos que podem pagar por lugares caríssimos no curto prazo;
(i) estudantes e pessoas de baixíssima renda que querem/devem economizar o máximo no curto prazo.
Logo, qualquer pessoa com um emprego minimamente estável que quer ficar em uma região por mais de um ano é fortemente empurrada para entrar na bolha.

E, depois que você entra, você não tem incentivo algum para sair dela (e vai pressionar o governo para manter a bolha crescendo).
Eu pensei que a pandemia iria implodir a bolha, mas isso ainda não ocorreu: só deslocou a bolha do centro para os subúrbios.

Eu não consigo pensar em nenhuma solução viável para isso (nem pessoal, nem coletiva).
A dinâmica que eu descrevi ocorre principalmente no primeiro mundo. No Brasil, há fatores diferentes. A falta de boas opções de aluguel é principalmente devida à falta de confiança na sociedade (o que possui um componente cultural e outro institucional).
Todo contrato entre duas partes é muito frágil. Logo, as pessoas colocam um "premium" em não precisar depender dos outros. Além disso, tem o histórico de se proteger de hiperinflação e de confisco.

Por outro lado, meu chute é que a bolha é relativamente menor, porque....
... o governo brasileiro tem pouca "capacidade estatal" e deve ter bem mais dificuldade em inflar a bolha. Além disso, eu chutaria que a porcentagem de proprietários é menor e eles possuem menos poder sobre os governos locais.

Nesse sentido, eu acho que isso é um problema...
... mais grave no primeiro mundo do que nos países em desenvolvimento.
Para adicionar um pouco de skin-in-the-game nessa análise: eu mesmo estou "comprado" na bolha. Entrei já tarde e com muito cuidado, mas ainda assim foi o melhor investimento que já fiz. Se eu fosse mais imprudente e tivesse comprado um palácio, teria me saída ainda melhor.
Enfim, em temos de bolha, se recompensa a imprudência. Eu adoraria ir agora para uma casa maior e mais longe nos subúrbios, mas fico com aquele receio que uma hora esse negócio precisa estourar (e vai ser mais pesado em quem outro mais tarde).
Aliás, deixa eu complementar com algo mais prático: o meu checklist pessoal para decidir se é melhor comprar ou alugar algo.

Esse é um assunto que gera muita discussão, mas a meu ver, as discussões quantitativas pouco importam. Um série de critérios qualitativos é suficiente.
O problema dos critérios quantitativos é que eles dependem de uma projeção sobre o futuro, o que é sempre incerto. Por outro lado, há critérios bem mais firmes para tomar esse tipo de decisão que podem ser respondidos puramente qualitativamente.
O primeiro deles é o seguinte: qual a probabilidade que você irá se mudar em menos de cinco anos?

Se for alta (mais de 50%), você não deve comprar. O custo de transação no mercado de imóveis é alto demais. Se você precisar comprar/vender com frequência, esses custos vão comer...
... seu retorno.

Se a probabilidade for baixa, aí você ativa o critério número 2: a região parece que vai continuar razoavelmente boa de morar nos próximos 10 anos?

Obviamente, não dá para ter certeza disso e será um semi-chute. Porém, dá para ter alguma ideia razoável...
... disso baseado nas tendências atuais (o desemprego está disparando? criminalidade?). Se não houver nada de trágico iminente, eu passo para o terceiro critério.

No.3: Eu posso absorver o custo e o risco dessa compra?

Esse é um critério eminentemente pessoal. Toda vez...
... que você adquire um ativo, você precisa administrá-lo. Isso significa abarcar custos de manutenção, tomar decisões de renovação, etc.

Esse critério não é apenas financeiro, mas engloba também seu tempo e interesse. Você quer ficar de olho no ativo? Entender o que está...
... acontecendo com ele?

Esse é um critério talebiano, em certo sentido. Não é o caso de tentar prever o futuro, mas de lidar com as consequências que o futuro trarão. Ou seja, você se sente confortável com o "skin-in-the-game" de ser dono disso?
Se você responder "sim" para essas três perguntas, geralmente é uma boa ideia comprar. Com algumas adaptações, isso serve para decidir comprar/alugar qualquer ativo.

No fundo, é basicamente uma equação entre prazo, custo de transação e custo de administração. Veja que não me...
... preocupo tanto com risco e retorno.

Esses são importantíssimos, claro, mas são secundários para o investidor não-profissional. A gente não vai acertar essa equação com mais segurança do que profissionais. Melhor presumir que ai dar a média do mercado e deixar para lá.
Esse é exatamente o mesmo princípio do John Bogle aplicado a outras áreas das finanças, aliás. Acho que pode ser generalizado para quase tudo: se concentre no que você pode controlar e não se estresse com o resto.
Por isso, no momento, eu sou dono apenas do meu próprio imóvel e de índices. Não tenho tempo para acompanhar ações individuais e, muito menos, para ter um negócio próprio.

Se eu arranjasse mais tempo, a prioridade seria um negócio próprio (sempre seguindo o principio de...
... ser dono daquilo que você é bom/gosta de gerenciar).
(Desculpem aí os erros de ortografia e os recomeços. Mais um dia cheio de coisa no trabalho.)

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Lucas Mafaldo

Lucas Mafaldo Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @lucasmafaldo

18 Oct
A temperatura começou a cair e fiquei com inveja do Joe Rogan, que se mudou para o Texas.
Estou vendo o programa dele com o Tom Papa. Ele parece até mais leve e confiante.
Mas não estou infeliz (ainda). Hoje o dia estava ensolarado, a folhagem toda vermelha, deu para praticar boxe sem suar ao ar livre. Um dia para agradecer...

... mas a graça já passa. Adoraria passar entre janeiro e março em outro lugar.
Read 4 tweets
25 Jul
Minha impressão é que as pessoas cansaram de discutir sobre o corona. O vírus não foi embora, mas não dá para avançar mais na compreensão do assunto.

Não é nem que o assunto tenha sido politizado. É que agora há dois universos mentais distintos e incomunicáveis.
Mas eu ainda tenho curiosidade pela realidade. Continuo achando que aquela previsão israelense estava certa: o vírus é mais contagioso do que o influenza e mais letal, mas é pelo menos dez vez letal do que as previsões alarmistas.

Também me parece que esse protocolo para...
... tratamento precoce tem grande chance de diminuir a letalidade na média, embora não seja uma cura garantida.

Além disso, certamente deve ser possível diminuir a letalidade aumentando a capacidade de reação do organismo (dieta saudável, exposição ao sol, etc.).
Read 21 tweets
10 Jul
Olavo falou um negócio muito importante nessa última entrevista que geralmente passa batido: o brasileiro, no fundo, é meio masoquista.

Eu acho que ocorre algo estranho na alma brasileira. Tem tanto sofrimento inevitável que as pessoas desenvolvem uma espécie de gosto pelo...
... sofrimento. Elas começam a achar que a melhor solução para qualquer problema é o que for mais sofrido, não o mais efetivo.

Por exemplo, esse negócio do coronavírus é exatamente assim: as pessoas ou acham que tem que deixar todo mundo pegar ou trancar todo mundo, sem...
... tentar enxergar medidas intermediárias.

Eu tenho parentes que estão em lockdown completo desde que isso começou (evitando até sair na rua para caminhar, por exemplo). Ou seja, são meses de um nível altíssimo de estresse, isolamento social, falta de atividade física e sol.
Read 15 tweets
9 Jul
Roberto Jefferson está fazendo tudo e mais um pouco para conquistar os conservadores.

Ele é inteligente. Percebeu que 1/3 do eleitorado, pelo menos, não tem casa. Além disso, não há mais sucessor em vista para Bolsonaro.

A questão é saber se a direita vai comprá-lo.
Talvez não haja outra alternativa. O bolsonarismo não parece ter recursos humanos suficientes para criar um novo partido. A dependência de quadros militares se revelou muito problemática.

Se o PTB conseguir se posicionar corretamente, pode crescer muito.
Creio que o que falta é disposição para recrutar gente nova na base. Como os partidos brasileiros têm pouca democracia interna, a renovação é muito lenta -- os novos talentos não querem se submeter aos caciques partidários.

Mas quem sabe o @blogdojefferson percebe isso e...
Read 4 tweets
6 Jul
Tem duas coisas que matam a educação brasileira (e, por tabela, toda a sociedade).

A primeira é a seguinte: o estudo não é visto como a aquisição de uma capacidade concreta, mas a remoção de um obstáculo arbitrário.
As duas coisas são parecidas, mas o resultado é totalmente diferente. É a diferença entre você ter um diploma porque ele é um sinal que você realmente aprendeu algo e ter um diploma porque você é proibido de trabalhar sem ele.
A mesma coisa entre "se preparar realmente para a faculdade" vs. "passar no enem/vestibular" ou "aprender a ser um bom auditor fiscal/policial/etc." vs. "passar em um concurso para auditor fiscal, etc.".

É por isso que a moça lá no vídeo se orgulha do cara ser engenheiro...
Read 10 tweets
28 Jun
Quer dizer que Moro foi pego plagiando e colocou a culpa na aluna? É esse o juizão, o nome forte pra 22?

Já ficou óbvio que o problema de Moro é de caráter mesmo. É um sujeito ardiloso, desprovido de noções básicas de moralidade.

Não vale o que o gato enterra.
Eu estou com preguiça do twitter e da política, mas sempre encontro energia para falar mal de Moro. Ele é de um mau-caratismo inspirador. Sempre sinto que fiz uma boa ação ao desmascarar esse santo-do-pau-oco.
Acho que a graça disso é que ele é um mal-caráter dissimulado. Aí vale o esforço de desmarcar a sacanagem. Tem que fazer um esforço intelectual e explicar um monte de coisa.

Ele é uma espécie de versão complementar de Lula, que é o mal-caratismo solto, descarado, desinibido.
Read 5 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!

Follow Us on Twitter!